Aprovada há um mês pelo Congresso Nacional, a reforma tributária foi recebida com euforia por vários segmentos da sociedade brasileira pelo fato de destravar a mais ampla reestruturação do sistema tributário, que vinha sendo pedida há 30 anos pelo sistema produtivo.
Uma análise fria, agora que o calor da votação de dezembro ficou para trás, revela que as negociações na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, que se arrastaram por meses, resultaram num arcabouço tributário repleto de contradições, por conta de pressões políticas regionais e da forte atuação dos grupos de interesses.
Com isso, dos grandes objetivos iniciais da reforma, poucos ficaram de pé. No fim das contas, um emaranhado de remendos e bizarrices devem dar as caras no dia a dia de empresas e setores da economia brasileira.
O NeoFeed conversou com três tributaristas: André Félix Ricotta, Luiz Gustavo Bichara e outro, que não quis se identificar. Eles elencaram as maiores contradições do texto final e apontaram os efeitos a longo prazo no sistema tributário, incluindo a impossibilidade de o Imposto de Valor Agregado (IVA) ser regido pelos seus dois princípios tributários: a igualdade e a neutralidade fiscal.
Acompanhe, a seguir, alguns dos "bodes" que estão entrando na sala da Reforma Tributária:
A "zona" industrial da Zona Franca de Manaus
Os privilégios mantidos PEC da reforma para preservar os benefícios das empresas instaladas na Zona Franca de Manaus (ZFM) foram considerados o maior absurdo por um tributarista ouvido pelo NeoFeed que preferiu manter o anonimato.
Ele lembra que foi incluída a manutenção da cobrança do IPI até 2073 especificamente referente à ZFM.
“Como são fabricadas bicicletas na Zona Franca, os fabricantes de outras regiões terão de pagar IPI, porque a ideia é impedir a competição com indústrias de lá”, diz o tributarista, citando a falta de bom senso de sobretaxar bicicleta, um meio de transporte sustentável.
O privilégio, segundo ele, cria uma reserva industrial no Brasil para fábricas da Zona Franca, citando o caso de uma empresa que fabrica em outra região do país um determinado produto.
“Se daqui a dez anos uma empresa da Zona Franca decidir fabricar esse produto, aquela empresa estabelecida em outra região passa a pagar IPI”, diz o especialista.
“Teremos, portanto, a tributação de um contribuinte ditada pela opção empresarial de um concorrente, ou seja, qualquer indústria estabelecida em outro canto do Brasil pode ser surpreendida no mês seguinte só porque surgiu uma concorrente na Zona Franca de Manaus”, conclui.
A (não) simplificação de impostos
O objetivo inicial da reforma era unificar cinco tributos que hoje incidem sobre o consumo, que passarão a ser reunidos no IVA, sistema adotado na maioria dos países.
O IVA será dividido em dois novos tributos. Um federal, que se chamará Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e vai unificar os tributos PIS, Cofins e IPI. Já o imposto estadual, chamado de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), vai reunir o ICMS (estadual) e ISS (municipal).
“No final, a reforma, que era para ser simplificadora, substituiu os cinco tributos por outros cinco, e não dois, sob o guarda-chuva do IVA: além do IBS e da CBS, foram criados um imposto seletivo, a contribuição estadual sobre produtos primários e, de quebra, ainda manteve o IPI”, afirma o tributarista André Félix Ricotta, sócio do escritório Félix Ricotta Advocacia e professor do IBET (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários).
Atualmente, mais de 170 países adotam o IVA, entre eles Canadá, Austrália, diversos países membros da União Europeia e emergentes como Índia, além de latino-americanos, como México, Colômbia, Chile e Argentina
Guerra Fiscal e o efeito Detroit
A mudança de tributação da origem para o local do consumo, um dos pontos mais elogiados pela reforma tributária – e que, na prática, eliminou a guerra fiscal entre os estados –, acabou indiretamente criando outro problema.
De acordo com Luiz Gustavo Bichara, sócio-fundador do escritório Bichara Advogados e especialista em direito tributário, o fim da guerra fiscal poderá causar o êxodo de indústrias instaladas em estados que ofereciam benefícios em direção à Região Sudeste, onde há maior consumo.
Na prática, é o chamado Efeito Detroit, numa referência à cidade norte-americana que sempre sediou a indústria automotiva dos EUA.
Nos anos 1980, quando os automóveis japoneses conquistaram o mercado norte-americano, a produção local desabou, causando elevado índice de desemprego.
“Salvo uma hipótese de recurso natural, todas as indústrias instaladas em regiões fora do Sudeste vão querer ficar perto dos grandes mercados consumidores, no eixo São Paulo, Rio e Minas Gerais”, diz o tributarista. “A tendência é de uma desindustrialização do resto do Brasil”, adverte.
O fato curioso dessa contradição, segundo ele, é que foi criado um fundo de R$ 100 bilhões que a União vai aportar para os estados visando, em tese, a compensar as perdas dos estados com a guerra fiscal. “Mas os empregos vão sumir, e pouca gente se deu conta disso”, diz Bichara.
As (inúmeras) exceções de tributação
As 42 exceções tributárias incluídas no texto final prejudicam os objetivos iniciais da reforma: criar uma alíquota padrão e outra diferenciada, para atender setores específicos.
Em outros países que adotam o IVA, poucas exceções foram incorporadas. No caso do Brasil, além de conseguir emplacar um número elevado de exceções, os grupos de pressão conseguiram a proeza de segregar até segmentos do mesmo setor desse benefício.
Ricotta cita como exemplo o que envolve o regime diferenciado aprovado para bares e restaurantes.
Segundo ele, bares e restaurantes vão pagar menos IBS e CBS, ou seja, alíquotas menores. Mas as padarias, que atuam no mesmo segmento, não foram beneficiadas.
“Na prática, quem for almoçar numa padaria vai pagar mais imposto em comparação de quem fizer uma refeição num bar, sendo que os dois segmentos são do mesmo setor, o alimentício”, acrescenta o tributarista.
Imposto do "pecado" desvirtuado
Dentre as principais mudanças introduzidas pela reforma, a criação do Imposto Seletivo (IS) até surgiu como boa intenção.
Conhecido como “imposto do pecado”, ele vai incidir sobre o consumo de bens e serviços tidos como “prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”, como o álcool, doces, tabaco, armas de fogo e apostas on-line.
Para defender o meio ambiente, a reforma incluiu a tributação da indústria da mineração e do petróleo na categoria do IS.
“O problema é que a taxação inclui as exportações desses produtos, o que é um absurdo”, diz o tributarista Bichara.
Impacto na reforma do IR
A inclusão de tantas exceções no texto final desvirtuou um dos objetivos iniciais da reforma tributária: diminuir a tributação do consumo e aumentar a taxação sobre a renda.
De acordo com o tributarista André Ricotta, o “fatiamento” da reforma tributária em dois – aprovação, primeiro, do imposto sobre consumo, e depois da reforma do imposto sobre a renda, ainda sem data – foi um erro.
Isso porque, segundo ele, os políticos e os grupos de pressão, na intenção de atender interesses próprios, acabaram elevando em demasia a alíquota de consumo, o que será difícil de reverter na próxima etapa.
“Os políticos, em especial os ligados ao Executivo, obtiveram arrecadação de consumo, mas na reforma do imposto sobre a renda vão aceitar diminuir a carga tributária, ou seja, deixar de arrecadar?”, questiona.
Segundo ele, as duas reformas teriam de ser feitas ao mesmo tempo, para compensar esses efeitos.
"O Brasil corre o risco de ficar inviável para empreender, com risco de alta carga tributária, que deve ficar acima de 28%, a maior do mundo no sistema IVA", adverte Ricotta.
As "pontas soltas"
O próximo passo da reforma tributária sobre consumo, aprovada em dezembro, é a criação de uma lei complementar para definir no detalhe algumas decisões incluídas no texto final.
O tributarista Luiz Gustavo Bichara prevê novos embates na definição dessa lei complementar, que será criada por um grupo de trabalho organizado pelo Executivo.
“Um exemplo é a definição de regime de exceção no sistema de saúde”, diz. “Não se sabe se esse regime vai privilegiar os serviços médicos em geral, os medicamentos, os hospitais, os planos de saúde e etc.”
Segundo ele, isso vale para vários setores, o que abre brecha para alterações pontuais em alguns dessas exceções na regulamentação.
Já o tributarista André Félix Ricotta diz que o longo período de transição da reforma aumenta o risco de novas investidas por mudanças.
A rigor, são 3 anos para começar a ser implementada, 10 anos para alterar o sistema tributária e 50 anos para completar a transição.
“Muita coisa pode acontecer no meio do caminho, incluindo mudança de regras e dos prazos”, adverte.
Segundo ele, de maneira geral, a reforma tributária deixou uma lição: "Foram atendidos os interesses de políticos e de setores da economia, menos dos contribuintes."