A intenção do governo federal de obter R$ 30 bilhões com revisão dos contratos de renovação antecipada de três concessões ferroviárias assinados pela gestão Jair Bolsonaro, sob a acusação de terem causados prejuízos à União, corre não só o risco de fracassar como de abrir uma crise no setor.
Na prática, a ofensiva do governo já causou um efeito negativo no mercado, ao projetar um cenário de insegurança jurídica que vai na contramão do avanço regulatório atingido no ano passado em iniciativas do próprio governo, do Tribunal de Contas da União (TCU) e de concessionárias de infraestrutura para remoção de travas contratuais de concessões em curso.
A atual tentativa de revisão envolve renovação antecipada de concessões de duas ferrovias da Vale (Estrada de Ferro Carajás e Estrada de Ferro Vitória-Minas), no valor de R$ 25,7 bilhões, e outros R$ 3,7 bilhões de uma concessão da MRS Logística, que administra 1.643 quilômetros de trilhos em São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.
O governo alega que a renovação antecipada dessas concessões foi feita por valores de outorga irrisórios. Nas última sexta-feira, 26 de janeiro, o Ministério dos Transportes notificou oficialmente as duas concessionárias sobre a cobrança, dando 15 dias de prazo para uma resposta.
A notificação se baseia em decisão do Tribunal de Contas da União (TCU), que referendou um acordo entre o governo federal e a Rumo, empresa logística do grupo Cosan.
A concessionária concordou em pagar R$ 1,5 bilhão adicional pela renovação da concessão da Malha Paulista de ferrovia, feita antecipadamente em 2020.
Mas a tentativa de usar o acordo com a Rumo para forçar uma revisão da renovação antecipada com a Vale e a MRS tem fundamentos jurídicos questionáveis, afirma um especialista ouvido pelo NeoFeed.
Outro sustenta que há um acórdão 10/2023 do TCU, referente à alteração unilateral de contratos de concessões de transmissão de energia, que em tese se aplicam a modificações dos contratos de concessão em geral, o que justificaria a notificação do governo à Vale e MRS.
O governo federal vinha sinalizando desde o ano passado a intenção de rever essas renovações antecipadas, questionando o abatimento de ativos não amortizados no valor da outorga pago à União.
Em valores corrigidos, o governo espera receber da Vale o excedente de R$ 21,2 bilhões pela estrada de ferro Carajás e de R$ 4,6 bilhões pela Vitória-Minas. Da MRS, são quase R$ 4 bilhões.
Em nota, a Vale confirma ter recebido a notificação e que analisaria o documento.
“A empresa continua cumprindo com as obrigações decorrentes da renovação antecipada das duas ferrovias, tendo entregado 100% do compromisso cruzado da Fiol e adquirido os equipamentos necessários para expansão da oferta de trem de passageiros”, diz a nota.
A MRS não retornou pedido de posicionamento.
Acordo entre partes
Rodrigo Figueiredo, sócio do escritório RVF Advogados e especialista em contratos públicos, sustenta que o caso da Rumo tratava-se de um acordo entre partes e não de um processo de auditoria do TCU, no qual o órgão teria que validar as contas feitas.
“Nesse acordo com a Rumo veio uma nota de rodapé do TCU com uma orientação para que o governo procedesse uma revisão das demais revisões de outorga”, diz Figueiredo.
A inclusão da orientação do TCU no contrato da Rumo ocorreu após os ministros do órgão barrarem uma tentativa do relator do processo, ministro Vital do Rêgo, de colocar uma exigência explícita no documento para a revisão do valor dos ativos de outros contratos.
Mesmo assim, segundo Figueiredo, essa orientação estimulou o governo a tentar forçar a revisão das outras renovações antecipadas. "Vale lembrar que o TCU aprovou sem ressalvas as renovações antecipadas da Vale e da MRS quando foram feitas, entre 2020 e 2022", diz.
O advogado Marcos Meira, presidente da Comissão Especial de Infraestrutura da OAB, no entanto, diz que o acórdão 10/2023 do TCU, de janeiro deste ano, dá sustentação ao pedido do governo.
Segundo ele, na notificação, o governo deu prazo de 15 dias às duas concessionárias para que se pronunciem acerca da recomendação de não descontar à vista o valor de ativos não amortizados, por ocasião da apuração do valor de outorga.
Para Meira, o pedido atual se baseia no acórdão que foi resultado de uma sessão do TCU para discutir alteração unilateral de contratos de concessões de transmissão de energia.
O tribunal decidiu pela ausência de fundamento para fracionar o contrato a fim de submeter essa parcela de investimentos a nova licitação, e Meira diz que essa decisão em tese deveria orientar futuras deliberações do TCU a respeito de modificações dos contratos de concessão em geral.
"Isso porque, mostra-se mais adequado o procedimento de realizar esses descontos ao longo do prazo contratual prorrogado", diz Meira, lembrando que as concessões do setor elétrico já adotam esse procedimento desde o Decreto nº 11.314/2022.
Meira acredita que a tendência é de as empresas e o governo chegarem a um acordo na SecexConsenso, câmara de conciliação no TCU.
Para Figueiredo, porém, as empresas podem judicializar a questão. “A revisão da renovação antecipada tem de ser baseada numa frente de legalidade”, diz. “Dada a aprovação anterior a esses dois contratos pelo TCU, é possível fazer essa revisão agora?”, questiona.
Segundo ele, a ofensiva do governo tem uma coloração mais política do que jurídica, para obter dinheiro para atingir a meta fiscal.
Neste sentido, além de causar insegurança jurídica, reverte uma tendência de desburocratização e liberação de travas para o reequilíbrio de contratos de concessão que na última década acumularam prejuízos.
“Em certa medida, essa pressão sobre a Vale e MRS agora parece indicar a volta da intervenção estatal burocrática nas políticas públicas”, diz Figueiredo.