O processo de regulamentação da reforma tributária de consumo mal teve início e já começou a gerar ruído nesta sexta-feira, 26 de abril, o que dá uma ideia do grande desafio de aprovar a segunda etapa da reforma até julho, como pretende o Executivo e o Legislativo.

Isso porque dois dias após ser enviado ao Congresso Nacional pelo governo federal, o extenso Projeto de Lei Complementar (PLP) só agora começou a ser destrinchado em detalhes por especialistas da área fiscal.

À medida que os tributaristas conseguiam se inteirar do conteúdo dos 499 artigos, 24 anexos e 360 páginas do PLP, vieram à tona os “buracos” da proposta, o que deverá tornar mais complicada do que o esperado sua regulamentação.

Essa é a avaliação de três renomados especialistas da área consultados nesta sexta-feira pelo NeoFeed. Assim como políticos e vários setores da sociedade, eles apostam no acerto previsto com o novo modelo de tributação, o Imposto sobre o Valor Agregado (IVA), mais simplificado que o atual e usado em mais de 170 países.

O IVA será dividido em dois novos tributos. Um federal, que se chamará Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e vai unificar os tributos PIS, Cofins e IPI. Já o imposto estadual, chamado de Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), vai reunir o ICMS (estadual) e ISS (municipal).

A Emenda Constitucional 132, aprovada em dezembro, com o arcabouço do novo sistema tributário nacional, já havia gerado críticas pelo elevado número de exceções, produtos que terão alíquotas diferenciadas, o que mina o princípio de imposto unificado com que o IVA é conhecido.

Na atual fase de regulamentação, o Congresso Nacional terá de avaliar e votar o detalhamento de cerca de 70 itens do PLP, o que deve gerar intenso debate. Mas as disputas são justamente as exceções.

Elas incluem produtos que terão alíquotas diferenciadas, mais baixas, quanto os que terão alíquota maior por serem enquadrados no Imposto Seletivo (IS) – batizado de “imposto do pecado”, espécie de punição por fazerem mal à saúde ou ao meio ambiente, como bebidas alcoólicas e cigarros.

Acompanhe a seguir os aspectos do PLP, divididos por tópicos, que receberam mais críticas dos especialistas. São eles: os tributaristas André Félix Ricotta, sócio do escritório Félix Ricotta Advocacia e professor do IBET (Instituto Brasileiro de Estudos Tributários); e Luiz Gustavo Bichara sócio-fundador do escritório Bichara Advogados; e Felipe Salto, ex-secretário da Fazenda e Planejamento do Estado de São Paulo e atual economista-chefe da Warren Investimentos.

Falhas do PLP

Ricotta critica inicialmente a extensão do projeto de lei complementar. “A ideia do IVA é trazer simplicidade ao sistema tributário, mas o conteúdo dos 499 artigos do PLP é maior que o próprio Código Tributário Nacional, como se fosse uma lei à parte”, aponta.

Segundo ele, como o processo de regulamentação prevê a discussão de outros projetos de lei paralelos dos parlamentares, será necessária uma convergência de propostas. “Corremos o risco de termos uma nova emenda constitucional para acomodar tudo.”

Salto, que já havia reclamado do texto da Emenda 132, endossa as críticas em relação ao PLP. “A tendência é uma distorção ainda maior agora: como funcionará o contencioso tributário, a fiscalização, a arrecadação, funções precípuas dos governos? Tudo ficará centralizado num Comitê Gestor, cujo funcionamento só será regulamentado posteriormente”, afirma.

Já Bichara adverte sobre a pressa de tentar aprovar uma reforma aguardada há 40 anos em menos de três meses. Isso porque o Congresso ficará esvaziado no segundo semestre, por causa das eleições municipais.

“Não entendo essa sofreguidão, a maioria das pessoas ainda não entendeu os principais pontos do PLP, tem muita novidade que ainda não foi explicada”, diz. “Não dá para votar na correria.”

Devolução de créditos

Um dos pontos mais elogiados do novo sistema de tributação, que propõe a devolução dos créditos gerados pelo novo IVA às empresas, a fim de evitar a chamada tributação em cascata, foi desvirtuado pelo PLP, afirma Félix.

Isso porque, pelo projeto de lei complementar, há uma previsão de que a empresa contribuinte só poderá obter a devolução dos créditos depois que comprovar que o fornecedor pagou o tributo.

“O recolhimento efetivo dos tributos é um problema do Fisco e não da empresa”, adverte o tributarista. Com esse erro, diz Félix, o PLP retoma uma discussão antiga do ICMS. “Se o fornecedor não pagou o imposto, o adquirente tem direito ao crédito ou devo pagar por ele para ter direito ao reembolso?”

Bichara é ainda mais crítico a essa falha. “No mundo inteiro, a empresa recebe nota fiscal, paga e toma o crédito. E se meu fornecedor parcelou o tributo, vou pegar meu crédito parcelado?”, questiona. Bichara diz que esse problema põe por terra um dos principais objetivos da reforma: a simplificação.

“Imagina a quantidade de funcionários que terei de manter na empresa para controlar se o fornecedor está pagando ou não o tributo. Espero que o Congresso Nacional legisle sobre isso”, diz Bichara.

Salto também vê consequências graves. Segundo ele, não há qualquer garantia de que a devolução automática de créditos tributários se dará a ponto de resolver o problema da cumulatividade. “É um terreno na lua vendido pelos idealizadores da proposta. Até agora, não se tem sequer um exemplo de como isso vai funcionar”, adverte.

“Se saírem devolvendo créditos como se não houvesse amanhã, estimularão as fraudes, das mais diversas e criativas, e vão erodir a arrecadação tributária dos Estados”, complementa.

Regras de exceções

O elevado número de exceções incorporadas à Emenda Constitucional nº 132 vai cair como uma bomba na regulamentação, adverte Salto. Na discussão sobre as exceções será necessário atingir um equilíbrio – concessões de alíquotas menores de determinados produtos deverão ser compensadas por aumento de alíquota de outros.

“O PLP nasceu com exceções que se multiplicaram feito aquele monstrengo da mitologia, a Hidra. E o Congresso não fará por menos. Certamente ampliará as exceções à alíquota de referência geral, estimada em 26,5%, mas que será superada”, diz.

André Félix joga luz para dois aspectos de outro item das exceções, o Imposto Seletivo (IS) – o chamado “imposto do pecado” –,  que considera contraditórios. Ele observa que o IBS e o CBS de alguns produtos terão redução de carga tributária para privilegiar o meio ambiente. “Ocorre que não há previsão constitucional privilegiando meio ambiente”, diz.

Ele questiona o fato de não haver diferenciação clara entre consumo e produção relativos ao IS. “Salame e calabresa, por exemplo, foram enquadrados pelo fato de o consumo desses produtos fazer mal à saúde, mas e a sua produção?”, pergunta.

Bichara aponta outros pontos contraditórios do IS. “Um deles é deixar de fora a tributação maior para armas de fogo e o outro é a inclusão de mineração e petróleo nesta categoria”, diz.

“Seletivo é um tributo que visa, no mundo inteiro, a desincentivar condutas socialmente reprováveis, como ingerir bebidas alcoólicas, mas no Brasil estamos tributando a exportação de mineração e petróleo, o primeiro e o terceiro item da balança comercial”, lamenta.

Alíquota do IVA

A estimativa do governo de que a alíquota final do IVA será de 26,5% não convence Salto. Para ele, será muito maior. “O Congresso vai seguir na linha do próprio Executivo e ampliará as exceções já multiplicadas pelo atual PLP “, diz, prevendo que ela se situe em 33%, “até porque precisará dar conta do financiamento dos fundos criados”.

Bichara também considera prematuro tentar saber agora quanto será a alíquota final do IVA. “Ninguém sabe, nem vai saber tão cedo, pois na verdade é preciso levar em conta três alíquotas: federal, estadual e municipal”, afirma.

O tributarista critica a atual alíquota média nacional citada pelo ministro Fernando Haddad, de 34%. “Ele pegou o exemplo de um contribuinte não cumulativo que vende mercadoria, sendo que um prestador de serviço hoje paga 8,65% de tributo e vai pagar 27% após a reforma”, adverte.

Transição

A longa transição entre os dois sistemas, após a aprovação do IVA, também é tema de preocupação de Felipe Salto. “No caso da CBS, a transição é mais rápida e deve funcionar, até porque a ideia de somar o PIS e a Cofins é antiga e poderia até ser feita por lei ordinária, como já propunham diversos especialistas lá atrás”, diz.

O problema, adverte, é o IBS e suas duas transições: a federativa, de 50 anos, para determinar algo essencial – a partilha do bolo arrecadado entre os entes federados –, e a transição dos antigos tributos (ISS e ICMS) para o novo IBS, que precisará acontecer entre 2029 e 2032.

Salto diz que o risco é alto de surgirem problemas nas duas transições. Ele afirma que o ICMS e o ISS terão suas alíquotas reduzidas à razão de 10% ao ano, de 2029 a 2032. “Assim, em 2033, teremos de derrubá-las de 60% das antigas alíquotas para 0%, isso não vai acontecer”, avisa. Ele acredita que haverá proposta de prorrogação de prazos, “até porque todos estarão pendurados na montanha de benefícios fiscais” da guerra federativa.

Resumindo: as transições são longuíssimas. “Estamos correndo um risco grave nessa matéria. Não há simplificação alguma”, lamenta. “O que há é uma promessa de convergência da tributação ao consumo final (destino das operações), mas a um custo altíssimo, inclusive com fundos de desenvolvimento e de compensações que representarão algo como R$ 800 bilhões até 2043.”

Segundo ele, o governo errou feio na questão da reforma tributária e segue errando. “Estamos promovendo uma revolução na Constituição Cidadã para quê? Para nada, para aumentar o contencioso tributário e tornar o regime mais complexo”, finaliza o ex-secretário estadual da Fazenda e Planejamento de São Paulo.