Quem vive o mundo do CVC conhece bem o desafio. Unir as letras foi fácil e ficou bastante sonoro. Todos enchem a boca para falar: “CVC”- cê-vê-cê. Mas a verdade é que o “C” de Corporação e o “VC” de Venture Capital vêm de mundos muito distintos. São como água e óleo. Não se misturam.
O "C" corporativo é avesso a riscos, busca resultados rápidos e comprovados, e não raramente precisa agradar aos acionistas no curtíssimo prazo. Costuma ter estruturas e processos bem definidos para dar o máximo de segurança e previsibilidade nos caminhos, sempre buscando melhorias contínuas a partir do status quo. E todo o sistema é moldado a partir deste contexto: perfil das pessoas, incentivos financeiros, ferramentas, decisões, governança, áreas de apoio, etc., etc., etc...
Já o VC é disruptivo, ousado, de longo prazo, incerto, busca soluções novas que mudam o jogo. Está disposto a errar, errar, e errar, em busca do acerto que vira a mesa e que compensa todos os erros anteriores. E todo o sistema é construído neste contexto bem diferente.
É crucial entender as nuances que separam os modelos corporativos e o do venture capital. Enquanto o primeiro busca segurança e previsibilidade, o segundo prospera na incerteza e no risco calculado. Estas diferenças impactam desde a mentalidade dos envolvidos até as estratégias adotadas.
Aqui podemos até incluir uma rápida analogia ao futebol. Enquanto o Corporate tem como grande objetivo não tomar gol, o Venture Capital só pensa em fazer gol. Assim, nem sempre é fácil escalar esse time.
Enquanto o Corporate tem como grande objetivo não tomar gol, o Venture Capital só pensa em fazer gol. Assim, nem sempre é fácil escalar esse time
Em função destes desafios, muitas iniciativas de CVC têm voos de galinha. Começam com grande alvoroço e expectativa, e logo se desfazem. O discurso é de longo prazo, mas o dia-a-dia puxa para as dores mais urgentes, deixando as dores mais importantes de lado novamente. Alguns culpam a aerodinâmica, outros o peso, mas o fato é que poucos alcançam realmente o voo de cruzeiro, o longo prazo, com os ganhos estratégicos e financeiros originalmente imaginados.
Algumas corporações usufruem da sua maturidade corporativa e conseguem constituir e manter um adequado distanciamento na sua iniciativa de CVC. Não deixam a iniciativa longe demais, para não perder o contato e as interações, que são fundamentais para o ganho estratégico. E não deixam a iniciativa perto demais, onde ela acaba engolida pela cultura, processos e urgências da corporação.
Boa parte dos casos de sucesso neste sentido contratam gestores especializados, pois é mais fácil controlar a distância de um fornecedor do que de um grupo de funcionários, que invariavelmente tendem a ser fagocitados pelo dia-a-dia corporativo. Não é um desafio simples.
Contudo, existe uma vacina interessante já testada na Europa e Estados Unidos, mas ainda incipiente no Brasil: o Multi-Corporate Venture Capital (MCVC). A palavra é grande e pomposa, mas o fundamental nela é que traz em sua essência elementos para se colocar como antídoto.
No MCVC, empresas com interesses comuns fazem investimentos relevantes em conjunto, no mesmo fundo, com um gestor independente e especialista tomando as decisões dentro de um conjunto de regras e políticas estabelecidas pelas corporações.
Segundo o estudo da americana Touchdown Ventures, 8% dos CVCs lançados no mundo em 2023 eram deste modelo. Um movimento ainda incipiente, mas revelador, num ambiente em que a maioria dos lançamentos foi de corporações que já têm fundos de CVCs anteriores em funcionamento, segundo o mesmo estudo.
Um exemplo neste sentido foi a iniciativa da United Airlines. Como sabemos, a indústria da aviação é uma das grandes responsáveis pela emissão de gases de efeito estufa, com grande impacto climático negativo. O tema está na agenda da sociedade em geral, e das companhias aéreas em particular. Como buscar soluções viáveis e inovadoras para produção de combustíveis ambientalmente sustentáveis para a aviação?
A United Airlines não quis resolver o problema sozinha. Como é um problemão de toda a cadeia de valor, ela montou um MCVC. Entre os investidores: Air Canada, Boeing, General Electric, J.P. Morgan Chase e Honeywell. Melhor todos juntos buscando as soluções do setor, ou cada um com sua iniciativa individual e concorrente?
Interessante observar que para investir num MCVC, inclusive com concorrentes, não é necessário compartilhar nada da estratégia, dos interesses ou motivações, que já não sejam públicos. Este acima é um bom exemplo.
Ao adotar o MCVC, as empresas corporativas podem mitigar riscos, alavancar o impacto, explorar novas oportunidades de crescimento e acesso a tecnologias inovadoras, e, principalmente: reconciliar os conflitos entre os mundos corporativo e do Venture Capital. Ao implementar este modelo, as empresas podem alinhar seus objetivos de longo prazo com a agilidade e inovação do capital de risco, garantindo uma vantagem competitiva sustentável.
Claro, tudo com governança robusta, bem estabelecida e sem poderes individuais de veto para que nenhuma mudança individual de curto prazo consiga matar o projeto de longo prazo. É paradoxal, mas assim se protege a corporação dela mesma, criando uma vacina eficaz.
* Gustavo Junqueira é sócio fundador da gestora KPTL