Com uma fatia de quase 70% das vendas do Carrefour Brasil, o Atacadão é, há tempos, o carro-chefe da varejista no País. E esse status não se restringe ao mercado local. A cada trimestre, a marca de atacarejo vem merecendo cada vez mais menções nas divulgações dos resultados globais do grupo francês.
Tal posição de destaque é o passaporte para outra fronteira que o Atacadão vai começar a desbravar no “mapa-múndi” do Carrefour: a exportação do seu modelo tropical de cash & carry, a partir da inauguração da primeira loja da rede na França.
A pequena Aulnay-sous-Bois, cidade de pouco mais de 83 mil habitantes nos arredores de Paris foi o local escolhido para esse desembarque. Fruto de uma conversão de um hipermercado Carrefour, a unidade reabre suas portas, rebatizada, nesta quinta-feira, 20 de junho.
“É um orgulho ter o Atacadão como piloto de um modelo que a França e a Europa não conhecem”, diz Stéphane Maquaire, CEO do Carrefour Brasil, ao NeoFeed. “É cedo para dizer que vamos a todo vapor, mas é um primeiro passo. Essa loja abre as portas para a nossa expansão internacional.”
Antes de cumprir esse trajeto, o Atacadão acelerou em sua expansão nos últimos anos, especialmente com as conversões de lojas na trilha da aquisição do Big, anunciada pelo Carrefour Brasil em 2021. Hoje, a rede de atacarejo tem 366 lojas no País, que somam mais de 1,8 milhão de metros quadrados.
O projeto francês adiciona 10 mil metros quadrados (m²) a essa conta. Maquaire não revela o investimento na unidade, mas ressalta que o valor se equipara ao aporte feito em conversões dessa magnitude no Brasil. Conforme apurou o NeoFeed, nessa base, o montante é de aproximadamente R$ 30 milhões.
Essa cifra não marca a estreia do Atacadão fora do Brasil. Mas traduz a primeira incursão com suas “próprias pernas” no exterior. A rede chegou ao Marrocos em 2014, por meio da LabelVie. A parceira responde, porém, por todos os aportes e pela concepção e gestão das 15 franquias da bandeira no país.
A LabelVie também vai operar, no dia a dia, essa primeira unidade na França. Mas, nesse caso, além dos recursos investidos, o projeto foi 100% desenvolvido pelo Carrefour e está sendo supervisionado por Noel Prioux, que comandou a operação brasileira do grupo entre 2017 e 2021.
Sob os olhos atentos do antecessor de Maquaire, o projeto francês começou a ser gestado há 18 meses. Na época, Alexandre Bompard, CEO global do Carrefour, elegeu a iniciativa como um dos pilares do plano estratégico do grupo para o período de 2022 a 2026.
Saída à francesa
Com visitas periódicas de executivos da matriz ao Brasil, a varejista previa inaugurar a loja francesa em 2023. Mas alguns obstáculos obrigaram o grupo a recalcular esse roteiro. A começar pela transferência do projeto da cidade de Sevran, também na Grande Paris, para Aulnay-sous-Bois.
Houve resistência nos dois casos. Em abaixo-assinados, moradores e políticos locais alegaram, entre outros pontos, que a loja traria um mix menos diversificado e prejudicaria o comércio local. A iniciativa só recebeu o sinal verde quando foi encampada por Bruno Beschizza, prefeito de Aulnay-sous-Bois.
“Eu entendo esse receio. Nós convertemos um hipermercado para uma marca desconhecida e, na Europa, há uma percepção de que o modelo de cash & carry oferece menos qualidade”, diz Maquaire. “Nós fizemos pequenos ajustes, mas para o consumidor francês e não para o prefeito da cidade.”
Um dos ingredientes que diferem o Atacadão francês é a área de 10 mil metros quadrados. No Brasil, as unidades podem chegar, em boa parte dos casos, a um espaço máximo de 6 mil metros quadrados. O sortimento também é mais amplo. Nessa largada, serão 13 mil SKUs, contra os habituais 9 mil.
“Desse total, 4 mil serão produtos específicos desse modelo. Os 9 mil restantes envolvem itens que já ofertávamos”, afirma Maquaire. “Os produtos frescos, por exemplo, têm muito mais relevância para o consumidor francês do que para o cliente brasileiro.”
Nesse balanço, cerca de 70% dos produtos alimentares serão de origem francesa. Os itens de marca própria terão uma faria de 25% no mix da loja, que, em sua operação, incluindo centros de distribuição, empregará 400 funcionários, um volume similar ao hipermercado que funcionava no mesmo endereço.
No rastro da inflação
Apesar desses ajustes, a abertura da loja vem embalada por um discurso que já foi validado no avanço recente das redes de atacarejo no Brasil, ocupando parte do espaço dos hipermercados. E que, na visão do Carrefour, dialoga com um contexto similar vivido atualmente pelo consumidor francês.
“Como muitos países, a França está sofrendo com uma inflação alta, que está corroendo o poder de compra dos consumidores”, diz Maquaire. “Vemos o Atacadão como uma boa resposta a esse contexto e, assim como fazemos no Brasil, vamos oferecer preços de 10% a 15% menores que o varejo local.”
Com esse conceito, os atacarejos começaram a ganhar mais corpo no Brasil a partir da crise de 2015. Da oferta antes voltada a pequenos comerciantes, o modelo evoluiu como uma opção também para os consumidores, que passaram a buscar alternativas que coubessem em seus orçamentos mais restritos.
Nesse contexto, players como Atacadão e Assaí investiram em melhorias na apresentação das lojas e na ampliação do mix, sem perder de vista o mantra de eficiência e preço. E avançaram além das zonas periféricas, onde o formato se popularizou, para regiões mais adensadas e centrais das grandes cidades.
O fato de atender tanto os consumidores como clientes B2B foi um dos elementos que diferenciaram o atacarejo brasileiro das lojas de descontos, formato que inspirou o cash & carry tropical e que foi difundido, em diferentes versões, na Europa e nos Estados Unidos.
Nessa primeira investida do Atacadão na França, já na largada, o Carrefour estruturou um time de dez profissionais com experiência no trade-in para atender o B2B e desenvolver uma base de clientes também entre os restaurantes, cafés, bares, pequenos mercados e afins.
“No Brasil, uma loja do Atacadão leva, em média, três anos para atingir sua maturidade de vendas”, diz Maquaire. “Nossa ideia não é ficar nesse piloto. Em setembro já teremos uma primeira luz do que precisamos ajustar para abrir outras lojas. Primeiro na França. Depois, veremos os próximos passos.”
Nessa provável expansão, o Atacadão pode encontrar pela frente diversos varejistas cujos modelos apostam em variações do formato de descontos agressivos. Entre elas, a francesa Leclerc e as alemãs Aldi e Lidl.
“O atacarejo é uma invenção brasileira e pode, sim, funcionar na Europa”, diz Alberto Serrentino, sócio da consultoria Varese Retail. “O Carrefour tem um domínio grande desse modelo, pela curva de aprendizado com o Atacadão, e consegue replicar as premissas que deram certo no Brasil.”
Ele aponta, porém, algumas pedras no caminho para que a rede ganhe escala na França. Além da resistência das comunidades locais, a regulamentação bastante complexa para obter licenças em novos projetos desse porte, que exigem grandes áreas, é um dos entraves a serem superados.
“Entretanto, se o modelo se mostrar, de fato, assertivo, uma saída é a conversão de hipermercados de baixo desempenho e baixo crescimento do grupo”, afirma Serrentino. “Essa mesma estratégia já foi aplicada no Brasil pelo próprio Carrefour e também pelo Assaí.”
Na França, o parque potencial de hipermercados do Carrefour à disposição para eventuais conversões não é pequeno. Atualmente, essa rede compreende 253 unidades. Na Europa, são 469 lojas do grupo nesse espaço.
Com esse e outros formatos, o Carrefour reportou vendas totais de € 22,1 bilhões no primeiro trimestre de 2024, alta anual de 13,5%. A América Latina registrou um crescimento de 48% no período nesse indicador, para € 6 bilhões. O grupo está avaliado em € 9,8 bilhões.
Avaliada em R$ 19 bilhões, a operação brasileira do Carrefour apurou vendas líquidas de R$ 24,8 bilhões entre janeiro e março, um crescimento de 1,8%. No período, as vendas do Atacadão avançaram 5,4%, para R$ 17,1 bilhões.