Em um evento esportivo da magnitude de uma Olimpíada, os atletas deveriam se preocupar apenas com seus desempenhos nas competições. Mas não foi o que aconteceu em Paris 2024. Esportistas de várias delegações se viram também apreensivos com a qualidade da água do rio Sena, da comida e das acomodações na vila olímpica.
Apesar do US$ 1,4 bilhão investido em projetos de despoluição, do pensamento positivo do presidente Emmanuel Macron e da prefeita Anne Hidalgo e da beleza majestosa da ponte Alexander III, um dos cartões postais da cidade e ponto de largada das provas realizadas no rio, os coliformes fecais e outros micróbios nas águas do Sena já entraram para a história dos jogos de Paris.
Os mais prejudicados foram os competidores do triatlo e da maratona aquática. “Ficávamos com a insegurança ao acordar se a prova aconteceria mesmo ou se seria cancelada”, contou a brasileira Viviane Junglbut. Ela nadou no Sena na manhã de quinta-feira, 8 de agosto, para a maratona aquática, da qual saiu na 11ª posição. Disse não ter sentido nada, mas só teria certeza mesmo dali alguns dias.
A inquietação da esportista se justifica. Em cinco ocasiões, treinamentos e provas foram adiados ou cancelados por “razões sanitárias”. Pior ainda para a equipe belga de revezamento misto de triatlo, que perdeu a atleta Claire Michel para a poluição.
Ao participar da prova de triatlo feminino e, depois de três dias de vômito e diarreia, teve de ser hospitalizada. Sem Claire, os belgas abandonaram a competição.
Segundo a plataforma investigativa francesa Mediapart, a qualidade da água só esteve satisfatória em dois de dez dias de análises. O comitê organizador contestou as informações, ressaltando que os testes, apontados como problemáticos, estavam próximas do limite aceitável.
E que, além disso, a área de coleta das amostras estava fora do percurso do triatlo, embora se situasse a cerca de 300 metros.
Garganta higienizada com álcool
A húngara Bettina Fabian preferiu acreditar que “as coisas marrons” que viu no Sena eram plantas podres. “Engoli muita água, mas vamos higienizar minha garganta com álcool e tudo bem”, afirmou ela.
Já a belga Jolien Vermeylen, parceria de equipe de Claire, foi mais incisiva: “Enquanto nadava sob a ponte, senti e vi coisas nas quais não deveríamos pensar muito. O Sena está sujo há 100 anos, então eles não podem dizer que a segurança dos atletas é prioridade. Isso é besteira.”
Os banhos no Sena estavam proibidos desde 1923 —. até os anos 1950, a prática foi tolerada. Do momento em que o rio foi escolhido como local do triatlo e da maratona aquática na Olímpiada 2024, as autoridades francesas iniciaram uma corrida contra o relógio para limpar o Sena.
A principal causa da poluição são os despejos das estações de tratamento de água. A prefeitura modernizou o sistema com novas tecnologias, como filtros e raios ultravioletas, para matar os micróbios resistentes ao tratamento de esgoto.
Em dias de chuva forte, os túneis subterrâneos e as estações de tratamento ficavam sobrecarregados e o excesso escoava para o Sena. Em maio, após “obras titanescas”, como definiram as autoridades municipais, foi inaugurado em Paris um centro de estocagem de águas pluviais, equivalente a 20 piscinas olímpicas.
Para provar que o rio voltaria a fazer parte da vida dos parisienses, dias antes da abertura dos jogos, Anne Hidalgo mergulhou no Sena. Macron prometeu o mesmo, mas até agora, nada.
"Eu quero carne"
O Sena não foi o único alvo de críticas e polêmicas. A meta ecológica dos jogos deixou muito atleta desconfortável — a ausência de ar-condicionado na vila olímpica, as camas de papelão (mais fáceis de reciclar) e os colchões duros demais (feitos com linhas de pesca).
Descontentes, as jogadoras da seleção de handball da Suécia solicitaram novos colchões, comprados às pressas em uma loja da gigante sueca Ikea, de móveis e decoração. “O problema não é a cama de papel, é o colchão duro. Precisava de um tempo para amaciar, mas não podíamos esperar”, justificou a atleta Jamina Roberts.
Tenistas americanas nem quiseram mudar os móveis. Preferiram trocar as acomodações olímpicas por um hotel. Já os jogadores da seleção de basquete dos Estados Unidos ficaram alheios a isso tudo. Eles se instalaram diretamente em um hotel de luxo, como fazem há anos em Olimpíadas.
Para alguns nadadores sul-coreanos o problema não era nem tanto a cama dura, mas a “sauna” nos ônibus que transportavam os atletas até os locais de competição. “Era mais fresco fora do que dentro do veículo”, comentou o nadador Hwang Sun-woo.
A skatista brasileira Rayssa Leal usou as redes sociais para um "desabafo": depois do treino do dia 24 de julho, ela e um grupo atletas foram "esquecidos" na pista da La Concorde.
"A gente ia sair 16h20 daqui da pista pra ir pra vila pra poder comer, tomar um banho e descansar. Adivinha que horas são? São 19h17, está todo mundo aqui esperando um tal de ônibus chegar e não chega", esbravejou, no vídeo do Instagram, usando um filtro de "cara de palhaço". "Eu quero chegar na vila, poder comer, estou com fome."
Mas talvez o que mais tenha causado irritação foi justamente a alimentação. Vários esportistas comentaram nas redes sociais sobre as longas filas de espera, as porções pequenas e a falta de proteínas. “O único problema é a falta de comida. É um pouco surpreendente”, disse o nadador hondurenho Julio Horrego.
O britânico Adam Peaty, prata nos 100 metros peito, foi duro. Disse que os competidores encontraram vermes na comida e mais: “O serviço não é bom o suficiente para o nível no qual os atletas devem performar. Precisamos dar o nosso melhor. Não há opções de proteínas suficientes. Eu quero carne, eu preciso de carne para perfomar e é isso que eu como em casa. Por que deveria mudar?”
"As pizzas são boas"
A ideia inicial dos organizadores era que 60% da refeições fossem carne e um terço delas baseadas em vegetais. Responsável pela administração do restaurante, a Sodexo fez os ajustes nas quantidades de proteínas.
Para os jogos, foram criadas mais de 550 receitas, incluindo uma seleção de menus, desenvolvidos por chefs estrelados, como Alexandre Mazzia.
Não convenceu muito, pelo menos não a estrela da ginástica Simone Biles: “Não acho que sirvam comida francesa na vila como a que comemos lá fora. Para os atletas é um pouco mais saudável. As pizzas são boas”.
Apesar dos problemas, muitos atletas vibraram em Paris e viveram momentos emocionantes nas competições, sobretudo os que voltam agora para casa com medalhas fabricadas com pedaços da Torre Eiffel.
Que o digam Rebeca Andrade, Beatriz Souza, Rayssa Leal, William Lima, Isaquias Queiroz, Augusto Akio, Tatiana Weston-Webb, Gabriel Medina, Duda, Ana Patrícia...