A inflação e a incerteza fiscal são os dois pontos de interrogação da economia brasileira. A harmonia entre eles é a paz esperada pelo mercado financeiro para colocar, novamente, o otimismo na mesa. Mas o esforço do governo para isso precisa ser genuíno.

“O mercado mostra que existe um grande risco de uma alta mais forte da inflação e que o Banco Central tem de subir os juros de maneira também mais acelerada do que se espera”, diz Rafaela Vitória, economista-chefe do Inter, ao NeoFeed.

“A economia já está operando perto da sua capacidade. Mais expansão de gastos pode provocar uma aceleração maior da inflação. Essa é a grande preocupação”, complementa.

Vitória fez uma revisão do cenário econômico. No relatório publicado na sexta-feira, 18 de outubro, que o NeoFeed teve acesso, ela eleva a projeção de inflação no ano de 4,4% para 4,5% devido a alta de energia e alimentos, ambos efeitos do recente choque climático.

“A maior aversão a risco, no entanto, continua pressionando o dólar, que teve nova valorização e chegou a R$ 5,65, acima da nossa expectativa de R$ 5,40 o que pode trazer pressão inflacionária adicional”, escreve a economista.

Embora considere os atuais juros no Brasil restritivos - ela foi contra o aumento de 0,25 ponto percentual da Selic na reunião de setembro, para 10,75% ao ano -, Vitória projeta mais duas altas de 0,50 ponto percentual para a taxa básica (antes o juro encerraria 2024 em 11,25%).

“Acredito que não havia, e ainda acredito que não há, necessidade de subir juros por conta do cenário de inflação, hoje. Mas quando esse receio contamina o mercado, e contamina o dólar, isso acaba gerando, sim, inflação na frente”, afirma a economista-chefe do Inter.

Com a confirmação de Gabriel Galípolo na presidência do Banco Central a partir de 2025, a sintonia entre a autoridade monetária, o governo e o mercado devem se restabelecer, correto?

Não necessariamente. Na visão de Vitória, assim como o compromisso do governo com o corte de gastos precisa ser cumprido com números, Galípolo terá de mostrar na prática o seu discurso no Senado: manter o esforço de política monetária e cumprir a meta de inflação.

A economista reforça que “tem uma visão positiva e construtiva da nossa economia”. E que pela primeira vez viu um upgrade da nota de crédito do Brasil ser criticado em vez de comemorado. “Esse é um termômetro do pessimismo que existe hoje, de maneira geral, nos mercados”, diz ela.

Leia, a seguir, os principais trechos da entrevista:

Qual é a sua principal preocupação econômica?
A principal preocupação é a inflação. Hoje, quando olhamos a dinâmica atual da inflação e o patamar de juros, não vemos uma inflação acelerando no próximo ano. Mas a grande preocupação é se os modelos estão corretos, ou seja, que tenha um choque maior. Em parte esse choque já está acontecendo nesse câmbio mais próximo de R$ 5,70, que traz uma pressão adicional. A questão fiscal também pode adicionar pressão pelo lado da demanda. E apesar de não termos um cenário base de aceleração da inflação, esse é o principal risco que vemos no cenário: a inflação permanecendo acima de 4% e evoluindo para um patamar acima disso no próximo ano.

Estamos em um momento de incerteza?
Vivemos um momento de grande incerteza com relação ao que vem pela frente. Tivemos um crescimento melhor que o esperado nos últimos anos. De maneira geral, tenho uma visão positiva e construtiva da nossa economia. O crescimento foi mais forte, o mercado de trabalho está bastante aquecido e, por outro lado, isso também se deve em parte a algumas distorções, principalmente pelo lado fiscal, que é o que traz essa grande incerteza para frente. Vivemos um momento delicado com os ativos no mercado precificando uma alta de juros e uma alta de inflação. Se essas distorções não forem corrigidas, podemos ter um cenário bem diferente pela frente.

"Vivemos um momento delicado com os ativos no mercado precificando uma alta de juros e uma alta de inflação"

Em razão desse cenário, você se surpreendeu com a decisão da Moody’s de elevar a nota soberana do Brasil?
Não muito. Sou muito crítica à política fiscal atual, não só pela expansão excessiva de gastos, mas pela menor transparência que temos tido nos relatórios, na própria contabilidade, de receitas a despesas subestimadas Existe, sim, uma deterioração fiscal, mas a decisão da Moody’s olha sempre a qualidade de crédito do país de modo relativo. Em relação aos pares, o Brasil não está tão ruim. O problema fiscal que temos hoje não é uma coisa muito diferente do de outros países, que saíram da pandemia com mais gastos e tem dificuldade em fazer esse ajuste. Nesse contexto, o Brasil está relativamente melhor. Isso embasa a decisão da Moody’s.

O mercado não está comprado nesse movimento.
Foi a primeira vez que vi um upgrade ser criticado. Em geral, são comemorados. Mostra até um termômetro do pessimismo que existe hoje de maneira geral nos mercados. Mas a Moody’s divergiu da maioria do mercado ao ter uma confiança maior na promessa de ajuste fiscal. Se, de fato, for cumprida, podemos ter uma melhora significativa na evolução da dívida e no custo da dívida, que hoje reflete o inverso. A Moody's fez uma aposta que isso vai ser feito. Resta saber quem vai acertar, a Moody's ou o mercado.

O pessimismo do mercado não é exagerado?
Existe, sim, uma deterioração fiscal. Até o momento não vimos uma ação concreta do governo para essa correção. E o arcabouço fiscal, que foi lançado no ano passado, que ganhou crédito na época do seu lançamento, não se mostrou efetivo até este momento, A dívida cresce, o custo da dívida cresce, a inflação não foi controlada e o Banco Central volta a subir juros. A falta de confiança no arcabouço tem uma razão de existir. Para o governo reconquistar isso, ele vai precisar mostrar na prática uma melhora das contas públicas.

"A falta de confiança no arcabouço tem uma razão de existir"

O ministro Fernando Haddad tem se mostrado favorável ao ajuste fiscal. Falta convencer o presidente Lula?
Acredito que existe espaço para cortar gastos mesmo com o governo que não é politicamente comprado com essa ideia. Não é só o presidente, existem várias outras alas do governo que resistem a reduzir os gastos. Mas quando olhamos a evolução das contas públicas, vemos que parte do crescimento mais exagerado das despesas incluiu irregularidades que precisam ser corrigidas. Tem espaço para correção com um pente fino do INSS, do BPC, do cadastro único do Bolsa Família. Na nossa visão, cortar entre R$ 30 bilhões e R$ 50 bilhões desses programas no próximo ano é simplesmente uma questão de revisão de irregularidades. Tem espaço, sim, para fazer isso.

Mas e a postura do governo?
O governo está se mostrando um pouco mais preocupado com essa questão. Não é só a alta de juros, mas principalmente a alta do dólar que bate em Brasília. Vejo que existe uma possibilidade maior de fazer essa correção de rumo pela pressão que temos visto no lado do curso da dívida, do lado do câmbio, que pode trazer uma aceleração maior da inflação. Não é o nosso cenário base, mas se continuar esse estresse prevalecendo nos preços dos ativos, com o câmbio a R$ 5,70, o governo pode ter um problema ao longo do ano, com inflação crescente e juros altos. Vejo espaço, sim, para essa correção de rumo.

Quando a confiança volta?
A confiança nesse anúncio só vai existir quando começarmos a ver os números mostrando esse controle de gastos. O que vai fazer o mercado voltar a ter credibilidade no arcabouço é o governo mostrar com números que as despesas estão sendo controladas.

A confirmação do Gabriel Galípolo como presidente do Banco Central vai reduzir as tensões existentes na e com a autoridade monetária?
Não necessariamente. Ainda tem vagas no Copom para serem preenchidas. O governo ainda não indicou os novos membros. E, de novo, acho que o mercado está no modo ver para crer. Apesar das falas do Galípolo serem na linha de ser duro com a inflação, acho que o mercado precisa ainda ver o desempenho dessa nova composição do Copom nas próximas reuniões para ganhar um pouco mais de confiança. Sem dúvida já estamos no modo transição. A preocupação agora é como vão ser as próximas reuniões e como serão os votos. O BC pode retomar parte da confiança votando de maneira unânime nas próximas decisões, com uma coesão maior. Isso ajuda a embasar toda a decisão de política monetária.

A decisão do Copom de setembro, de subir a Selic, foi acertada?
Acredito que não havia, e ainda acredito que não há, necessidade de subir os juros por conta do cenário de inflação, hoje. Mas quando esse receio contamina o mercado, e contamina o dólar, isso acaba gerando, sim, inflação na frente. O Banco Central poderia ter mantido a política monetária mais estável ao longo do ano. E não só essa última alta, mas desde a discussão em maio quando ele mudou o próprio guidance. Vimos a divergência nos votos e toda essa mudança trouxe mais incerteza na política monetária. O mercado acabou elevando o prêmio de risco e hoje o BC se vê nessa posição de ter de subir os juros.

Sem necessidade?
Na nossa visão, já temos um juro bastante restritivo. Se o governo cumprir a promessa de controlar o gasto público no ano que vem, a inflação projetada de 3,80% está dentro do intervalo da meta. Essa banda da meta existe justamente para acomodar esse tipo de choque. E o BC pode ter um pouco mais de prazo para levar a inflação para o centro da meta. A alta acabou adicionando mais volatilidade do que trazendo confiança para o mercado.