O momento não poderia ser mais desafiador para Gabriel Galípolo. O economista de 42 anos assume na quarta-feira, 1º de janeiro, um dos cargos públicos mais sensíveis do País: a presidência do Banco Central – órgão responsável por conduzir as políticas monetária, cambial, de crédito e de relações financeiras com o exterior e que ainda vive uma transição, após adquirir autonomia há pouco mais de quatro anos.
Ao longo de dezembro, a péssima repercussão do pacote fiscal anunciado pelo governo no final do mês anterior, com medidas consideradas insuficientes para reequilibrar as contas públicas, gerou uma crise de confiança do mercado financeiro que acabou se refletindo em vários indicadores.
A expectativa de inflação para 2025, divulgada em 30 de dezembro pelo último Boletim Focus - que reúne previsões de mais de 100 instituições financeiras - avançou de 4,84% para 4,96%, acima do teto de 4,5% do sistema de metas previsto para o ano.
A cotação do dólar disparou de tal forma que levou o BC a queimar US$ 30,8 bilhões das reservas cambiais ao longo de dezembro para segurar a fuga da moeda americana do País, num claro sinal de desconfiança dos investidores estrangeiros com os rumos da economia brasileira.
Até o Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central reagiu à desancoragem de expectativas aprovando por unanimidade, em sua última reunião do ano, em 10 de dezembro, o aumento de 1 ponto percentual da taxa Selic, para 12,25% ao ano - e ainda se comprometeu em elevar a taxa básica de juros em 1 ponto percentual nas próximas duas reuniões.
É neste cenário, com previsão da taxa Selic de 14,25% em março e o arcabouço fiscal se esfarelando, que Galípolo inicia seu mandato à frente do BC, com a missão constitucional de trazer a inflação para o centro da meta, de 3%.
Por uma série de fatores, o novo presidente do Banco Central tem a seu favor um trunfo que foi negado ao seu antecessor, Roberto Campos Neto – apoio quase unânime de governo, oposição, Congresso Nacional, mercado financeiro e de economistas.
Trata-se de um feito notável diante do cenário político polarizado do País nos últimos anos, ainda mais levando-se em conta que sua nomeação foi uma escolha pessoal do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – que passou boa parte de seus dois anos de governo azucrinando Campos Neto pelos juros elevados mantidos pelo BC.
Chamado de “menino de ouro” por Lula, Galípolo soube construir de forma metódica o apoio de diferentes setores para encarar o maior desafio de sua carreira. Afinal, era pouco conhecido fora do círculo de economistas heterodoxos paulistas até fazer parte do grupo que montou o programa econômico do PT na campanha presidencial de 2022.
Com contatos no meio financeiro graças ao período em que foi CEO do Banco Fator (2017-2021), Galípolo ciceroneou Lula em reuniões com empresários, investidores e banqueiros durante a campanha.
Após a eleição, Fernando Haddad – escolhido pelo presidente para o Ministério da Fazenda – anunciou Galípolo como secretário executivo, o equivalente a número dois da pasta.
Seu nome ganhou projeção nacional de vez quando foi nomeado por Lula, em junho de 2023, para ocupar um cargo estratégico no BC, o de diretor de Política Monetária.
Dissidência
O começo foi tenso na nova casa. Na primeira reunião do Copom que participou juntamente com os outros três diretores indicados por Lula, Galípolo liderou a divergência quanto ao aumento da taxa Selic, aprovada em 0,5 ponto percentual por 5x4, com os dissidentes votando por aumento menor, de 0,25 ponto percentual.
O que seria uma nova etapa da guerra fria entre governo e BC ficou rapidamente para trás. Aos poucos, Campos Neto e o próprio Galípolo se empenharam em esfriar a polêmica em torno de uma suposta divisão no BC.
Desde então, todas as decisões do Copom foram unânimes, com Galípolo dando mostras de entrosamento com Campos Neto e de apoio à política monetária do BC em entrevistas, participações em debates e em artigos.
A sabatina para confirmar a nomeação de Galípolo no Senado reforçou a percepção de que o BC deve manter seu trabalho de forma independente sob o novo comando.
“Fica muito claro nos discursos o cuidado que ele [Galípolo] tem em reforçar a instituição do regime de metas de inflação, o que é extremamente bem-vindo”, afirma Leonardo Porto, do Citi.
Seguro, paciente e didático, Galípolo respondeu às perguntas dos senadores por quase quatro horas, com uma atuação impecável: assertivo, não hesitou uma vez sequer, defendendo a autonomia e a independência do BC com a mesma linha de argumentos usada por Campos Neto.
“A autonomia técnica e operacional do BC é aquilo que foi determinado e aquilo que os diretores devem perseguir e seguir”, disse Galípolo, em uma das inúmeras vezes que teve de se referir ao tema ao longo da sabatina, arrancando elogios rasgados até dos senadores ligados ao bolsonarismo.
Cravou a aprovação unânime da Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado e, depois, folgada maioria no plenário ao abordar de forma direta os dois temas espinhosos que cercavam sua nomeação: a interferência de Lula e a mudança de meta de inflação.
“Toda vez que encontrei o presidente Lula, escutei de forma enfática e clara a garantia da liberdade na tomada de decisões, e que o desempenho da função deve ser orientado exclusivamente para o bem do povo brasileiro”, disse Galípolo.
Na sequência, falou o que todos esperavam ouvir: "A meta de inflação é de 3%, bandas servem para absorver choques eventuais e não para reduzir esforço da política monetária", afirmou, advertindo que não cabe a à autoridade monetária "essa liberdade para ter uma concepção elástica” do que é a meta de inflação.
A consagração no Senado não foi um feito isolado. A maioria dos economistas ouvidos pelo NeoFeed não conhecia Galípolo pessoalmente e tampouco sabia de sua trajetória até ele ser nomeado como braço direito de Haddad na Fazenda.
Todos, porém, elogiaram sua atuação nos últimos dois anos e demonstraram confiança de que Galípolo vai fazer um bom trabalho no comando do Banco Central.
“Fica muito claro nos discursos o cuidado que ele tem em reforçar a instituição do regime de metas de inflação, o que é extremamente bem-vindo”, afirma Leonardo Porto, economista-chefe do Citi Brasil.
Porto acredita que a nomeação de Galípolo para a diretoria de política econômica do BC, em 2023, foi um sinal claro de que seria o sucessor de Campos Neto.
“Achei ótimo ele ter um ano e meio de treinamento ao lado do presidente da instituição”, diz o economista do Citi. “Existe um processo de aprendizado em qualquer posição, ainda mais no BC, ele pôde aprender, pensar sobre os problemas para, quando assumir, ter confiança nas diretrizes que vier a adotar”.
Solange Srour, diretora de macroeconomia para o Brasil do UBS Global Wealth Management, também tinha poucas informações sobre a trajetória de Galípolo, além do fato de ele ter assinado três livros em parceria com Luiz Gonzaga Belluzzo, conhecido economista heterodoxo e professor da Unicamp.
“Mas quando Galípolo foi para o BC, não atuou da forma heterodoxa”, observa Srour, para quem o novo presidente do órgão, apesar de passar confiança, terá sempre de provar estar à altura do desafio.
“A percepção que o mercado tem dele vai ser sempre testada e ele vai precisar construir essa credibilidade ao longo do tempo”, afirma a economista, cravando que foi Galípolo quem comandou e conduziu a última e histórica reunião do Copom, com três aumentos de 1 ponto da taxa Selic encaminhados – o que só seria confirmado dias depois pelo próprio Campos Neto.
“Essa última reunião do Copom foi do Galípolo, o mercado não viu o resultado como uma decisão conduzida pelo Roberto, ele estava claramente tentando passar a mensagem de que não vai ceder à inflação”, diz Srour. “Esse foi o primeiro teste do Galípolo e ele passou bem.”
Pragmatismo
Paulistano, filho de pai uruguaio e torcedor do Palmeiras, Galípolo não tem o perfil típico dos presidentes que passaram pelo Banco Central, com fortes referências acadêmicas ou atuação destacada no setor privado.
Galípolo formou-se em economia pela PUC de São Paulo, fora do circuito acadêmico mais badalado da área, que inclui a FEA-USP, a FGV, a Unicamp, e a PUC do Rio de Janeiro - sendo a última conhecida por formar economistas da linha ortodoxa e a anterior, heterodoxa, de perfil desenvolvimentista e alinhada mais à esquerda do espectro político.
Após o mestrado, Galípolo lecionou na PUC-SP por seis anos. Não chegou a fazer doutorado, detalhe que não chega a ser relevante para quem o conhece em profundidade.
“Galípolo tem uma curiosidade intelectual absurda, além de economia, ele estuda física quântica, astronomia, matemática e filosofia; é insaciável”, assegura Paulo Gala, professor da FGV, que conhece o novo presidente do BC há mais de 20 anos.
Os dois se aproximaram quando participavam de um grupo de discussão sobre história do pensamento econômico e chegaram a assinar, com outros colegas, um estudo acadêmico publicado em 2008, Notas para uma avaliação do discurso marxista em Douglass North.
O americano North, Prêmio Nobel de Economia de 1993, foi percursor dos estudos sobre a importância das instituições sociais para o desenvolvimento de um país, tema que rendeu o Nobel de Economia de 2024 a Daron Acemoglu, Simon Johnson e James A. Robinson.
“O Galípolo sempre leu de tudo sobre economia ortodoxa e heterodoxa, mas passou a mergulhar mais nessa parte de teoria monetária desde que foi para o BC", diz Paulo Gala, da FGV.
“O Galípolo sempre leu de tudo sobre economia ortodoxa e heterodoxa, mas passou a mergulhar mais nessa parte de teoria monetária desde que foi para o BC, em especial os trabalhos do Claudio Borio”, diz Gala, referindo-se a um dos economistas mais respeitados da atualidade, chefe do departamento monetário e econômico do Banco de Compensações Internacionais (BIS) – espécie de banco central dos bancos centrais, com sede na Suíça.
Entre as inúmeras referências que teriam influenciado Galípolo, porém, Gala destaca o inglês John Maynard Keynes (1883-1946) – cujas ideias de linha heterodoxa mudaram fundamentalmente a teoria e prática da macroeconomia no século 20.
Keynes defendeu uma política econômica de estado intervencionista, por meio da qual os governos usariam medidas fiscais e monetárias para mitigar os efeitos adversos dos ciclos econômicos - recessão, depressão e booms.
As ideias econômicas de Keynes foram adotadas pelas principais potências do Ocidente do período de reconstrução do pós-guerra até o final dos anos 1960. Gala observa que Keynes, apesar de admirado pela esquerda, atuava com desenvoltura no mercado financeiro.
“Keynes foi gestor de fundo e morreu milionário, ou seja, tem esse lado de pensador acadêmico e de executivo de mercado que também vejo no Galípolo”, diz o economista da FGV.
Esse lado executivo do novo presidente do BC, por sinal, foi testemunhado por Gala – que liderava a gestora do Fator quando Galípolo foi contratado como CEO do banco, em 2017. Os dois trabalharam juntos por três anos.
“Ele tem uma capacidade de trabalho assustadora, é daqueles que acorda às 5h e dorme às 23h, é um executivo pragmático, que resolve problemas, com grande habilidade de lidar com as pessoas, tem o dom da chamada inteligência emocional”, relata Gala.
Outro lado pouco conhecido do novo presidente do BC foi sua passagem, anos antes, pelo governo estadual paulista, sob comando do tucano José Serra. Em 2007, Galípolo foi chefe da Assessoria Econômica da Secretaria dos Transportes Metropolitanos e, no ano seguinte, diretor de Estruturação de Projetos da Secretaria de Economia e Planejamento.
Nesse período, atuou na implementação da parceria público-privada (PPP) para construção da linha 4 do Metrô paulista. “Ele ajudou a montar uma estrutura de garantias para o leilão do Metrô, com câmara de compensação e uma modelagem complexa que oferecia segurança jurídica”, diz Gala.
Essa expertise o levou a atuar como consultor. Anos depois, já no comando do Banco Fator, Galípolo liderou os trabalhos da modelagem da privatização da Cesp (Companhia Energética do Estado de São Paulo) e da Cedae (Companhia de Águas e Esgotos do Rio).
“Galípolo é um dos grandes conhecedores do sistema brasileiro de PPP”, afirma Gala. “O sucesso profissional o impediu de fazer doutorado, ele só não completou a formação acadêmica por falta de tempo, era muito requisitado.”
Dificuldades à frente
Quanto à gestão de Galípolo no BC, Gala prevê dificuldades. “O grande desafio, já na partida, será o de administrar um choque de juros e uma fuga de capitais, com o real se desvalorizando muito”, prevê. “Mas ele tem a responsabilidade de controlar a inflação e certamente vai fazer isso, doa a quem doer.”
Tony Volpon, ex-diretor do Banco Central, professor-adjunto na Georgetown University e um crítico mordaz do atual governo petista, é outro economista que só conheceu Galípolo após sua passagem pelo Ministério da Fazenda e nomeação ao BC.
“Até agora, ele tem feito bom trabalho”, elogia Volpon. “Ele é bem ativo em falar com o mercado, procura informações e criou uma rede de contato interessante.”
Daqui para a frente, no entanto, do alto de sua experiência passada no Banco Central, Volpon afirma que Galípolo precisa aproveitar sua proximidade com Lula para “explicar algumas verdades duras” ao presidente.
“Galípolo precisa dar um choque de realidade para o governo: o País está perdendo credibilidade, tem investidor saindo e estamos precificando o mercado de tal maneira que o risco de recessão em 2025 e em 2026 aumentou muito”, diz.
Para Volpon, o governo está tentando ganhar tempo e Galípolo precisa ficar atento. “Se não fizer nada e ceder, acabou a carreira dele”, adverte. “Por outro lado, se fracassar em sua missão, Galípolo será o primeiro a ser culpado por uma recessão.”