A recente adesão ao protecionismo por parte do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, com distribuição de subsídios para empresas americanas envolvidas na transição energética e sobretaxação de produtos chineses, colocou em dúvida a tradição liberal americana de livre mercado e intervenção mínima do Estado na economia.
Um livro lançado esta semana nos Estados Unidos, What Went Wrong With Capitalism (“O que deu errado com o capitalismo”, ainda sem previsão de lançamento no Brasil), do economista indiano Ruchir Sharma, amplia a discussão ao mostrar que as ideias básicas do capitalismo passaram a ser abandonadas por sucessivos governos americanos há muito mais tempo, pelo menos desde os anos 1930, ganhando impulso a partir da década de 1980.
Essa distorção do capitalismo, segundo Sharma, é comprovada pela constante intervenção governamental na economia por meio da propagação de uma cultura de resgate promovida por governos democratas e republicanos, com apoio do Federal Reserve, o banco central americano.
Empresas e mercado financeiro, em especial, se beneficiaram desse modelo em detrimento da competição, o que já havia levado críticos a cunharem a expressão “socialismo para os ricos” para definir o capitalismo atual nos Estados Unidos.
“A premissa do capitalismo, de que o governo limitado é a condição necessária para a liberdade e oportunidade individuais, ainda não foi testada num ambiente moderno”, escreve Sharma.
Fundador e diretor de investimentos da Breakout Capital, uma empresa de investimentos focada em mercados emergentes, Sharma trabalhou por 25 anos no banco Morgan Stanley, onde foi chefe de mercados emergentes e estrategista-chefe global. Em paralelo, ele preside o Rockefeller International e atua como colunista do jornal inglês Financial Times.
O resultado, segundo ele, são garantias estatais dispendiosas para todos — resgates para os ricos, direitos para a classe média, assistência social para os pobres. O autor lembra que os déficits do governo passaram de raros a constantes e, como resultado, a dívida pública quadruplicou nos Estados Unidos, atingindo hoje mais de 120% do PIB.
Um dado reflete esse efeito: durante as últimas duas décadas, o país passou do quarto para o 25º lugar na classificação da Heritage Foundation em termos de liberdade econômica. "Esse fracasso ajuda a explicar a profunda insatisfação que tantos americanos sentem neste momento”, defende o autor.
Duas contextualizações históricas citadas por Sharma ajudam a entender como esse processo foi impactando a economia americana ao longo de décadas. Ele cita a ideia original pregada pelo economista britânico John Maynard Keynes (1883-1946) de que o governo deveria poupar durante as recuperações, para que pudesse gastar pesadamente para aliviar as recessões.
Na década de 1960, com o fim da poupança americana do pós-guerra, o então presidente John F. Kennedy lançou o primeiro grande estímulo para acelerar a recuperação. Desde então, o governo dos Estados Unidos começou a acumular déficits significativos em tempos bons e ruins, com uma média de 4% do PIB em recessões e 3% em recuperações entre 1980 e o final de 2019.
Segundo o economista, a era de austeridade fiscal de décadas recentes, frequentemente criticada, deveria ser descrita como uma era de estímulo constante.
"Rebelião neoliberal"
Sharma também desmonta a tese de que o governo do então presidente Ronald Reagan (1981-1989), com sua "rebelião neoliberal”, teria destruído o Estado de bem-estar social em vigor desde o pós-guerra. Segundo ele, desde 1980, as despesas com a segurança social aumentaram nos Estados Unidos em maior proporção do que na maioria das economias desenvolvidas.
O que mudou sob Reagan foi que, à medida que os gastos aumentavam, a arrecadação de impostos permanecia estável, de modo que o governo começou a pagar a sua própria expansão por meio de empréstimos, aumentando o déficit público.
Foi justamente na década de 1980 que, receosos de que as dívidas crescentes pudessem terminar noutra depressão ao estilo da década de 1930, os bancos centrais começaram a trabalhar em conjunto com os governos para apoiar grandes empresas, bancos e até países estrangeiros, sempre que os mercados financeiros oscilavam.
Os governos expandiram os auxílios — que eram raros — para os resgates de 2008 e excessos bilionários da pandemia, quando o governo dos EUA forneceu ajuda para empresas grandes e pequenas, em dificuldades ou não, com pagamentos diretos de US$ 166 bilhões para 170 milhões de americanos, incluindo os com rendimentos elevados.
Por trás desse processo, reside um efeito na economia: um colapso na taxa de crescimento da produtividade, ou produção por trabalhador, que caiu no início da pandemia para mais da metade desde a década de 1960.
Essa queda é causada por um ambiente de negócios repleto de proteção, regulamentação e dívida governamental. Nas últimas três décadas, aponta Sharma, a burocracia americana eliminou um total de apenas 20 regras, ao mesmo tempo que adicionou novas regras a um ritmo alucinante de cerca de 3.000 por ano, sob ambos os partidos.
Neste cenário, megaempresas — em especial da indústria da tecnologia — solidificaram-se em oligopólios por meio do lobby junto dos reguladores e da eliminação dos concorrentes, e não por meio da inovação.
Sharma aponta alguns caminhos para revigorar o capitalismo. Um deles é que os líderes governamentais abandonem a utopia de agradar a todos, pois o mais provável é que prejudiquem ainda mais o crescimento, aumentem a desigualdade e aprofundem a desconfiança popular.
Para voltar a funcionar, de acordo com o autor, o capitalismo precisa de um campo de jogo onde as pequenas e as novas empresas tenham a oportunidade de desafiar – destruir criativamente – antigas concentrações de riqueza e poder.
Segunde ele, esse processo de intervenção e proteção estatal explica a imobilidade da economia, que está sufocando o sonho americano.
Como diz Sharma: “O capitalismo ainda é a melhor esperança para o progresso humano, mas apenas se tiver espaço suficiente para funcionar.”