Carmem Miranda chegou, com a alegria brasileira, aos Estados Unidos no fim dos anos 1930, no entreguerras, e em meio à diplomacia cultural promovida em Washington; mas, no começo da década, o nome do Brasil teve destaque no noticiário americano por motivos nada simpáticos.
As vendas, para investidores desavisados, de títulos podres emitidos pelo governo da Velha República e de ações enganosas de uma ferrovia brasileira nunca construída estavam entre os casos mais notáveis de malandragens do mercado acionário que ajudaram a empobrecer e desesperar famílias americanas vergadas pela Grande Depressão provocada pela quebra da Bolsa de Nova York, de 1929..
O Brasil foi só mais um nome numa espantosa coleção de exemplos de desvios, fraudes e manipulações típicas da época. Ela só veio a público graças ao esforço de políticos, advogados e acadêmicos decididos a salvar o capitalismo americano da cobiça suicida de um pequeno grupo de privilegiados sem muitos escrúpulos.
As descobertas motivaram uma guinada por mais regulação nos EUA que marcou a história do mercado de capitais no país. Foi preciso superar a forte reação de poderosos atores do mercado financeiro que acusavam de ameaça socialista qualquer esforço para proteger poupadores indefesos e evitar indesejável concentração do poder privado.
Os personagens, conflitos e reviravoltas que marcaram esse período e resultaram na consolidação de um ambiente mais saudável para investidores e poupadores são descritos com detalhes novelescos em “Taming the Street (Domando a Rua, em tradução literal)”, da jornalista financeira Diana B, Henriques, ex-repórter do The New York Times.
Recém-lançado pela Random House (e sem previsão de lançamento no Brasil), o subtítulo da obra dá uma pista do conteúdo: “A velha Guarda, o New Deal e a luta de FDR (Franklin Delano Roosevelt) para Regular o Capitalismo Americano”.
Não faltam vozes – a começar pela própria autora – que comparam a briga de Roosevelt contra desvarios do mercado de valores à situação atual, em que Joe Biden enfrenta críticas por sua intenção de estabelecer maior controle sobre negócios envolvendo bilhões e brechas de regulação em setores-chave para a economia americana.
Apoiados amplamente pelos eleitores insatisfeitos com a onda de falências e calotes que provocaram grandes perdas econômicas aos cidadãos nos “loucos anos vinte”, Roosevelt, aliados e assessores foram acusados de promover o comunismo e até a “nazificação” da América, ao promover e criar leis e instituições que sustentam, até hoje, grande parte da confiança dos investidores no mercado de valores mobiliários.
Roosevelt teve seu percurso para a Casa Branca pavimentado pela promessa de fazer algo contra a sucessão de escândalos e perdas financeiras gerados nos anos 11920 por golpes com informações privilegiadas, manipulação de mercado e desvios de recursos de investidores. Diana Henriques conta como, obstinado, o político arregimentou parceiros capazes de fazer frente a campanhas violentas contra seus esforços de maior regulação estatal.
Esses esforços levaram à criação, entre outras instituições, da SEC (a comissão de valores mobiliários e câmbio norte-americana) e da Nasdaq, instituição criada para controlar o gigantesco e, na época, descontrolado mercado de balcão, que acabou servindo de notável plataforma para lançamento de empresas inovadoras de tecnologia no final do século.
O roteiro envolve personagens singulares, capazes de lances estratégicos apoiados por cuidadosas investigações e pela experiência acadêmica. Além de Roosevelt, Henriques se detém mais detalhadamente sobre três nomes-chave desse período. Um deles é Joe Kennedy, ele também um dos milionários beneficiados pelas estripulias sem controle do mercado no começo do século XX, figura respeitada mas vista como outsider pelas velhas raposas do mercado.
Financiador de campanha de primeira hora, o patriarca da família Kennedy, que veria seus filhos mais tarde brilharem na política, foi cooptado para o posto de primeiro presidente da SEC, e preparou terreno para o terceiro comandante da instituição, William Oliver Douglas, advogado e professor, que aprofundou e sofisticou a regulação do mercado.
O quarto personagem protagonista da narrativa de “Taming the Street” é Richard Whitney, marcante – e influente - presidente da Bolsa de Valores de Nova York, líder da velha guarda de privilegiados dirigentes do mercado acionário.
Obrigado a renunciar à presidência após enrolar-se em um caso questionável de uso de seu poder na bolsa para obter ganhos indevidos, Whitney continuou atuando nos bastidores e publicamente a favor de total desregulação dos mercados e contra o que classificava de afronta à democracia e à liberdade de iniciativa.
Os abusos, revelados por audiências públicas e investigações dos auxiliares de Roosevelt, reforçaram a causa dos que defendiam maior regulação, e venceram resistências no Legislativo e no Judiciário que poderiam enterrar os avanços do New Deal – a nova política de recuperação econômica de Roosevelt - nessa área.
O livro traz uma análise da importância, na estratégia do New Deal, dos conglomerados de serviços públicos de eletricidade, uma nova tecnologia que começava a revolucionar a qualidade de vida da população – mas que, embrulhada num emaranhado de holdings e arranjos financeiros, ameaçava gerar ganhos palpáveis só para os poucos capitalistas no controle dessas empresas.
Ao lado do enfrentamento das manipulações e desvarios do mercado de ações, Roosevelt tentava, também, tornar acessível a todos essa ferramenta de mudança, que altos preços colocavam fora de alcance de boa parte da população.
Após a morte de Roosevelt, seus sucessores esvaziaram o forte apoio dado aos reguladores. O enfraquecimento da fiscalização e sucessivas ondas de desregulamentação, ao alimentar a especulação descontrolada, podem ser responsabilizados por grandes crises como a que, em 2001, quebrou a gigantesca Enron, e a que convulsionou as bolsas em 2008.
Henriques alerta para a repetição dos erros que cavaram o fosso onde se enterrou a economia americana no entreguerras, com a exuberância de mercados não regulados como o de criptoativos e a pressão pelo desmantelamento do sistema regulatório posto de pé pelos anos Roosevelt.
Ela chama atenção para uma América “de novo afligida pelos males de 1920: renda dos trabalhadores estagnada, um fosso crescente entre ricos pobres, um impressionante enriquecimento dos 1% no topo da pirâmide de renda”. Não vê como enfrentar esses problemas, sem “domar os instintos predatórios e prioridades egoístas dos atores mais poderosos em nosso sistema capitalista”.
Henriques recomenda a solução apontada por Franklin Roosevelt, contra interesses poderosos da época (inclusive financiadores de sua candidatura): em lugar de apostar numa improvável distribuição de riqueza por parte de poucos beneficiários de um sistema desregulado e sem controle do Estado, assegurar equidade de condições e punição eficaz de abusos.
E, dessa forma, garantir a participação, no mercado, das pessoas nas camadas inferiores da pirâmide de renda, capaz de gerar riqueza da qual os mais ricos podem tirar proveito e recolher seus ganhos. O exemplo dos anos 20 e 30, mostrado no livro em todas suas cores e sombras, é um argumento poderoso.