O mercado financeiro foi dormir com a expectativa do anúncio de um pacote de corte de gastos e descobriu, ao longo desta quarta-feira, 27 de novembro, que isso se somou a uma isenção de imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil com a compensação de taxação para quem tem renda de mais de R$ 50 mil.
“Isso deixou de ser um pacote de gastos e passou a ser um pacote de ninguém sabe o que é”, disse um gestor com bilhões de reais sob gestão ao NeoFeed. “Os R$ 70 bilhões (de corte de gastos) são vapor d’água. Não tem nenhuma sustentação mais forte.”
De uma forma geral, essa foi a reação de vários gestores do mercado financeiro com os quais o NeoFeed conversou após o pronunciamento do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, no qual ele deu as linhas gerais do que o governo federal pretende fazer (mais detalhes sobre o anúncio mais abaixo).
“À primeira vista, achei fraco esse pacote e a inclusão da isenção do IR junto foi péssimo”, diz um dos maiores gestores da Faria Lima.
Na visão de um presidente de um grande banco, no entanto, os R$ 70 bilhões de cortes de gastos anunciados para os próximos dois anos é bem expressivo e deveria ser suficiente. Mas ele alerta que tudo vai depender da credibilidade e da magnitude efetiva desses cortes.
“Se amanhã divulgarem que estão cortando R$ 70 bilhões de uma maneira bem clara, bem transparente, acredito que a reação vai ser positiva. Se não, vai ser muito negativa, porque o mercado já está numa vibe muito negativa”, afirma esse banqueiro.
De acordo com ele, a isenção de imposto de renda para quem ganha até R$ 5 mil e a taxação dos super-ricos é uma agenda legítima. Mas, em sua visão, houve uma inversão de valores.
“Eles priorizaram esse tema em vez do corte de gastos. É uma sinalização de que vamos ter uma agenda populista antes de ter um equilíbrio fiscal efetivo. No mínimo, foi uma falta de sensibilidade de como conduzir essa divulgação”, diz.
É a mesma percepção de um gestor da Faria Lima ligada a uma empresa internacional. “Esse pacote sem o balão de ensaio do IR, o mercado ia comer como farinha e tocar para frente. Mas misturado com isenção de IR, ficou uma lógica difícil de avaliar. Estamos sentados numa bomba relógio”, afirma ele.
No fim do dia, como disse um economista de um grande banco ao NeoFeed, esse é um pacote paliativo. “Vai ficar para o próximo governo, seja ele qual for, a tarefa de fazer um ajuste grande em 2027. Não terá como adiar.”
Ou, segundo as palavras de um sócio de um banco de investimentos: "Demoraram tanto que a pouca credibilidade que tinham desidratou. O número parece bom. Se fosse há 35 dias, teria sido excelente, o dólar estaria em R$ 5,50."
Segundo um gestor com mais de R$ 20 bilhões sob gestão, um pacote, para ser crível, precisa incorporar as expectativas. “E o governo com um pacote mais ou menos, que não é nota 10, e, para piorar, eles jogam em cima isenção de IR, que não sabe de onde vai vir”, diz. E conclui: “O pacote não atinge o objetivo de melhorar a expectativa.”
Walter Maciel, CEO da Az Quest, resumiu o desalento do mercado financeiro com as medidas. “Em vez de um pacote de corte, veio um pacote de aumento de gastos”, diz Maciel. “Mas o mercado entende que o presidente acredita que o gasto governamental vai impulsionar o PIB e que o fiscal não gera crescimento. O mercado está esperando Godot.”
O mercado espera, agora, um detalhamento das medidas depois do pronunciamento do ministro Haddad – o que deve acontecer ao longo da manhã da quinta-feira, 28 de novembro. Mas mesmo sem o teor das medidas, muita gente já pegou a calculadora.
O economista-chefe da Warren Investimentos, Felipe Salto, especialista em contas públicas, calcula que o aumento da isenção de Imposto de Renda para a faixa até R$ 5 mil terá um custo de ao menos R$ 45,8 bilhões.
“É arriscado e não recomendável colocar na mesa uma medida de custo elevado em termos de desoneração, cuja compensação exigiria desenho complexo neste momento, que seria o de cortar gastos para conferir credibilidade ao ajuste fiscal pretendido pelo Executivo”, afirmou Salto, em nota.
Justiça social, defende Haddad
Mesmo assim, Haddad tentou passar otimismo ao anunciar as medidas, usando a expressão “justiça social” como uma espécie de fio condutor do pacote, por meio do qual o governo se propõe a cobrar mais imposto de quem ganha mais, e menos de quem ganha pouco.
“Estamos anunciando hoje a maior reforma da renda de nossa história”, disse Haddad no pronunciamento. “A nova medida [isenção do IR] não trará impacto fiscal, ou seja, não aumentará os gastos do governo”, prosseguiu, afirmando apenas que quem tem renda superior a R$ 50 mil por mês “pagará um pouco mais”.
Boa parte das medidas já vinha sendo sinalizada pelo governo, a maioria referentes a cortes ou redução de orçamento de programas sociais envolvendo população de baixa renda, como mudança na regra de reajuste do salário-mínimo, no abono salarial e no Benefício de Prestação Continuada (BPC), além de alterações na previdência dos militares.
A maior novidade foi o anúncio de uma nova regra determinando que, em caso de déficit primário, ficará proibida a criação, ampliação ou prorrogação de benefícios tributários.
Outro anúncio que chamou a atenção foi referente às emendas parlamentares – que vêm sugando gastos do governo. Haddad anunciou que o montante global das emendas parlamentares crescerá abaixo do limite das regras fiscais estipuladas pelo arcabouço
"Essas medidas consolidam o compromisso deste governo com a sustentabilidade fiscal", assegurou o ministro. O pacote ainda terá de passar pelo crivo do Congresso Nacional. Serão enviados uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) e um projeto de lei complementar.
Promessa fora de hora
Promessa de campanha do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o aumento da faixa de isenção do IR foi visto como uma medida populista e anunciada em momento inadequado, que coloca em xeque o compromisso do governo de reduzir os gastos públicos.
Hoje, quem ganha até dois salários-mínimos (R$ 2.824,00) não precisa recolher IRPF, graças a uma combinação do limite de isenção, que vai até R$ 2.259,20, e o desconto simplificado.
Na prática, o anúncio de isenção do IR tirou o impacto que outras medidas ditas como “positivas” pelo governo – como a taxação de super-ricos e a promessa de redução de supersalários no funcionalismo público.
“A análise das medidas sugere que o BC terá muito mais trabalho para alcançar a meta de inflação”, adverte Alfredo Menezes, CEO e sócio fundador da Armor Capital, no X. “Teremos aumento do consumo e será um grande impulso para a economia. Mas haverá uma menor propensão a investir, já que os dividendos para os grandes investidores serão tributados."
O drama do governo é adequar os gastos ao arcabouço fiscal, conjunto de regras criado no ano passado para manter o equilíbrio das contas públicas. Uma série de despesas obrigatórias, porém, vem crescendo a uma velocidade maior do que o limite de gastos do arcabouço, como os gastos com benefícios previdenciários e assistenciais.
Os gastos com Previdência Social, por exemplo, dispararam R$ 68,66 bilhões com a volta da política de valorização do salário mínimo, criada por Lula, que corrige o benefício pela inflação mais o crescimento do PIB de dois anos anteriores.
A indexação do mínimo também ajuda a explicar o aumento de R$ 19,35 bilhões com o programa do BCP e a alta de R$ 10,24 bilhões com abono salarial e seguro-desemprego. No caso do BPC, o aumento de decisões judiciais para pessoas com deficiência tem preocupado o Ministério da Previdência Social.
Na queda de braço com setores do governo que resistiam a cortes, o anúncio da limitação do ganho real do salário-mínimo representou uma vitória para a equipe econômica. O objetivo é alinhar a política de valorização do mínimo às regras do arcabouço fiscal —cujo limite de despesas tem expansão real de 0,6% a 2,5% ao ano.
Pela regra que estava em vigor, o salário mínimo teria ganho real de 2,9% em 2025, conforme o desempenho do PIB (Produto Interno Bruto) de dois anos antes. Em 2026, a alta seria acima de 3%, considerando as projeções para o crescimento neste ano.
Com as mudanças, o salário mínimo deve subir para R$ 1.515 em 2025. A nova regra de limite de ganhos reais do mínimo pode render uma economia de R$ 11 bilhões até 2026.
Outra medida com impacto refere-se ao abono salarial – que teve mudança na regra de acesso. Hoje, o valor do abono (de até 1 salário-mínimo) é pago a quem recebeu remuneração de até dois salários mínimos no ano-base. O governo decidiu limitar o benefício para quem ganha até R$ 2.640. Esse valor será corrigido pelo IPCA e se tornará permanente quando corresponder a 1,5 salário-mínimo.
Em relação à previdência dos militares, o governo decidiu fixar idade mínima de 55 anos para que o militar passe à reserva remunerada - o critério atual para isso é o tempo de serviço de pelo menos 35 anos, sem exigência de idade mínima. Outra decisão foi passar a cobrar contribuição de 3,5% para o fundo de saúde dos militares.
(Colaboraram Márcio Kroehn e Ralphe Manzoni Jr.)