Auguste Escoffier, um dos cozinheiros mais célebres da história, achava que o lugar das mulheres não era na cozinha. Na cozinha dos restaurantes, bem entendido. O melhor, dizia, é que elas se limitassem à cozinha de casa. Noventa anos após sua morte, Tássia Magalhães, chef e proprietária do Nelita, resolveu lançar uma provocação bem-humorada ao francês tido como um dos papas da gastronomia.

O novo menu-degustação do restaurante tem dez tempos e propõe uma reflexão sobre a história e os modismos. O último prato salgado, “codorna/chocolate/cebolas”, é ao mesmo tempo uma homenagem e uma resposta contemporânea ao chef francês que viveu entre 1846 e 1935.

Primeiro, porque na cozinha do Nelita só há mulheres. “No total, somos 12 meninas”, diz Magalhães ao NeoFeed. “Essa é a melhor resposta que poderíamos dar à visão que ele tinha das mulheres e tornou pública num discurso que fez em 1890 nos Estados Unidos.”

Nessa fala, Escoffier dizia que as mulheres não funcionam numa cozinha profissional porque agem com o coração e não seguem muito as regras de uma receita. “Aquilo me chamou muita atenção: minha ideia ao encerrar o menu dessa forma foi ressignificar o papel da mulher e mostrar que, quase um século depois, temos uma cozinha 100% feminina e de alta cozinha.”

Nem por isso, Tássia Magalhães se considera feminista. O seu intuito é apenas conquistar um pouco mais de espaço para as mulheres dentro da cozinha profissional: “Se a gente parar para pensar, no Brasil já há algumas cozinhas nesse caminho, mas ainda falta muito.”

Ao mesmo tempo, o prato de codornas do menu também homenageia o restaurante Le Faison d’Or ("O Faisão de Ouro") inaugurado por Escoffier em Cannes, em 1879.

“É uma obrigação render uma homenagem a ele, que também criou as brigadas de cozinha, o conceito de menu degustação e é um precursor da alta gastronomia moderna”, explica a chef.

Toda a criação do menu teve um fundo histórico e, de certa forma, educativo. “Estou com uma equipe muito jovem de meninas e eu queria trazer para elas um pouco da história da gastronomia: mostrar um pouco a base clássica, falar das pessoas que foram importantes”, conta ela.

Uma das dificuldades na formação dos jovens, atualmente, segundo Tássia, é a proliferação da informação instantânea com vídeos curtos em TikTok, YouTube e Instagram, que inundam os celulares. “Eles estão perdendo esse hábito da pesquisa, de conhecer o que é tradicional. Sempre falo que, para criar, é preciso saber o clássico. E esse foi um menu que pesquisei muito para compartilhar com as meninas um pouco dessas bases”, diz.

Tássia quer aumentar a participação das mulheres nas cozinhas profissionais, mas ela não se considera feminista (Foto: Samuel Hideki)

Também do novo menu do Nelita, o prato “gnocchi/ricotta/coalhada/parmesão” é uma referência à cozinha molecular do espanhol Ferran Adrià (Foto: Estúdio Mió)

Escoffier dizia que as mulheres não funcionam numa cozinha profissional porque agem com o coração e não seguem muito as regras de uma receita (Foto: commons.wikimedia.org)

Outro prato que fala dos modismos foi inspirado na onda da cozinha molecular, que teve como expoente o espanhol Ferran Adrià e que acabou muitas vezes mal copiada mundo afora. Na receita de “gnocchi/ricotta/coalhada/parmesão”, Tássia usa técnicas moleculares em um nhoque feito com batata, ricota e araruta, buscando um pouco de brasilidade nesse diálogo com a inovação. “Não faço cozinha molecular, mas nesse caso tento trazer um pouco essa referência estética e no paladar”, conta.

O Nelita é um restaurante intimista, que tem cozinha aberta e um balcão pequeno onde é possível acompanhar o preparo dos pratos. Vai completar quatro anos na rua mais movimentada do Baixo Pinheiros, em São Paulo. Tem o nome de sua mãe e é o primeiro lugar verdadeiramente autoral de Magalhães, que começou na confeitaria do extinto Pomodori, restaurante comandado por Jefferson Rueda, atualmente à frente da Casa do Porco.

Tássia Magalhães tem 35 anos, nasceu em Guaratinguetá, no interior paulista, e se formou em gastronomia na escola do Senac de Campos de Jordão.

Depois, entrou direto para o Pomodori, onde ficou dez anos. Nesse período, fez um intervalo de um ano quando foi morar na Dinamarca para estagiar na confeitaria do Hotel D’Angleterre, em Copenhague.

Sua carreira solo começou em 2018 com a Risoeria, um pequeno restaurante de arrozes no Itaim, em sociedade com o marido, o sommelier Danyel Steinle, que a acompanha em todos os negócios.

“Eu uso todos os tipos de arrozes porque sou do Vale do Paraíba. E todos os pratos levam farofa com farinha de mandioca, é uma coisa bem brasileira”, afirma ela. A marca Risoeria ela continua usando em eventos, mas pretende reabrir a casa em breve.

Além do Nelita, o casal também é proprietário do Mag Market, misto de café, padaria artesanal e confeitaria. O lugar foi inaugurado durante a pandemia e ficou conhecido por seu bolo de chocolate.

“Comecei pela confeitaria e acho que um chef de cozinha precisa conhecer todas as partes”, diz a chef. “Eu acredito que a leveza dos meus pratos trago da confeitaria. Consigo fazer essa junção das praças: da cozinha quente com a confeitaria.”