Há vinhos que narram sua história na taça — revelam o sabor autêntico das uvas e expressam o terroir onde nasceram. São os chamados vinhos de mínima intervenção, parte de um movimento ainda pequeno, mas em ascensão.
Embora não existam dados específicos sobre esse segmento, o relatório da consultoria Grand View Research sobre vinhos orgânicos ajuda a lançar alguma luz sobre sua expansão. Segundo o estudo, o mercado global de vinhos orgânicos movimentou US$ 11,87 bilhões em 2024 e deve alcançar US$ 21,48 bilhões até 2030, com taxa de crescimento anual de 10,4% entre 2025 e 2030.
Ainda que vinhos orgânicos e de mínima intervenção compartilhem princípios semelhantes, como o cultivo sem agrotóxicos e o respeito ao terroir, eles não são sinônimos.
O orgânico, assim como o biodinâmico, está relacionado principalmente ao manejo no vinhedo. Já o de mínima intervenção vai além: envolve também escolhas na vinificação, como o uso de leveduras nativas, baixa ou nenhuma utilização de sulfitos, fermentação espontânea e rejeição a correções enológicas intensas — o que pode resultar em vinhos com mais personalidade, que variam conforme a safra e refletem melhor o caráter do ano.
Dentro desse espectro, estão ainda os vinhos naturais — uma vertente mais radical, feita sem nenhuma (ou quase nenhuma) adição de insumos, sem filtragem, estabilização ou controle técnico, o que exige mais risco do produtor e nem sempre agrada a todo tipo de consumidor.
Apesar disso, Lis Cereja, dona da Enoteca Saint VinSaint, em São Paulo, conta ao NeoFeed que tem notado o interesse crescente por vinhos que fogem do padrão industrial. Ela é uma das principais vozes do vinho natural no Brasil, idealizadora da Feira Naturebas — a maior da América Latina — e autora do livro Vinho Natural, lançado em 2024.
“Mais de 10% do mercado brasileiro já é movimentado por vinhos orgânicos, naturais e biodinâmicos”, afirma ela, que há 17 anos oferece em seu restaurante e bar uma carta focada em vinhos de baixa intervenção — e, em alguns casos, de intervenção zero.
Lis explica que há diferentes perfis de consumidores interessados nessas propostas. “Tem muita gente da nova geração. Mas há bebedores de vinho e sommeliers desencantados com a padronização dos rótulos comerciais que estão buscando por algo mais autêntico”, conta. “E, claro, há o consumidor que faz escolhas mais conscientes e valoriza quem está produzindo limpo, sem agrotóxico, sem escravizar pequenos produtores.”
Para a especialista, a falta de literatura especializada e a carência de formação profissional ainda são entraves para que o movimento dos vinhos com mínima intervenção ganhe mais força no Brasil.
“Muitos consumidores nem sabem que no processo de vinificação industrial entram grandes quantidades de aditivos, de sulfito, que é conservante...”, diz a dona da Enoteca Saint VinSaint. “E um bom vinho natural exige mais talento de quem o produz, porque não tem artifícios.”
Com o objetivo de fortalecer essa filosofia, a Saint VinSaint lançou em janeiro deste ano uma linha exclusiva, composta por rótulos de pequenos produtores brasileiros. O portfólio também mantém vinhos da América Latina e da Europa, berço do movimento de vinhos artesanais.
"Simplesmente" vinho
Historicamente, o que hoje chamamos de vinho de mínima intervenção era, simplesmente, vinho. Durante milênios, as uvas eram fermentadas com leveduras selvagens, sem correções químicas, sem aditivos ou filtragens.
Esse método durou até que a praga da filoxera devastou vinhedos europeus no século 19. Foi também nesse período que apareceram as práticas modernas de vinificação, com o uso crescente de tecnologia, estabilizantes e correções foram adotadas por vinícolas, principalmente as que produzem em larga escala.
Mas, a partir dos anos 1970, nomes como Jules Chauvet e Marcel Lapierre, na França, passaram a defender o retorno à fermentação espontânea, ao uso mínimo de sulfitos e à transparência do terroir.
Nas décadas seguintes, produtores italianos como Josko Gravner e Saša Radikon, da região de Friuli-Venezia Giulia, e Frank Cornelissen, na Sicília, ganharam projeção internacional com vinhos elaborados sem correções químicas — cada um com estilo próprio e identidade regional.
Até hoje não existe uma regulamentação formal para definir vinhos de mínima intervenção, que podem ser encontrados em rótulos orgânicos, biodinâmicos ou naturais. E a ausência de regras claras também alimenta tensões entre diferentes visões sobre o que é qualidade no vinho.
Enquanto produtores e consumidores alinhados à filosofia da mínima intervenção valorizam a liberdade criativa e a expressão mais crua do terroir — e, no caso dos naturais, com variações entre garrafas —, críticos acreditam que esse tipo de vinho tem defeito.
“Para mim, defeito é quando o produtor mascara a personalidade do vinho, se sobrepondo ao terroir e à vinificação”, defende ao NeoFeed Maria Emília Atallah, sommelière da loja De La Croix, especializada em vinhos naturais.
“Mas sei que há níveis de sensibilidade e de gosto. Eu, quando migrei para vinhos naturais, achava o máximo aqueles bem turvos e com uns aromas muito loucos. Fui mudando com o tempo e com o meu conhecimento. Acho que beber vinho tem de ser algo leve e divertido”, complementa.
Fundada em 2018 pelo francês Geoffroy de la Croix, a importadora promove degustações e oferece rótulos de pequenos produtores garimpados em diferentes regiões da França. Entre os destaques estão o Travers de Marceau 2019, tinto do Languedoc assinado por Jean-Marie Rimbert, e o Toc 2020, de Philippe Tessier, do Vale do Loire.
Bebida com história
Na Europa, há diversos expoentes da mínima intervenção. No Beaujolais, Jura Métras, herdeiro de Yvon Métras — um dos fundadores do movimento natural na França — dá continuidade ao trabalho da família com vinhos disputados por colecionadores e reconhecidos pela La Revue du Vin de France.
No Brasil, as condições climáticas e regulatórias tornam o caminho mais árduo — mas não impossível. A gaúcha Domínio Vicari, em Monte Belo do Sul, é uma das mais consistentes nessa linha. Liderado por Lizete Vicari, o projeto elabora vinhos naturais desde 2007, com fermentação espontânea, sem aditivos e sem filtração.
Já a Lidio Carraro, embora não faça parte do movimento dos vinhos naturais, segue uma filosofia sustentável, com cobertura vegetal permanente, controle biológico de pragas, entre outros cuidados. Seus destaques são o Grande Vindima Merlot e o Elos Touriga Nacional/Tannat, reconhecido pelo Guia Descorchados.
Para a produção dos vinhos com baixa intervenção, em Encruzilhada do Sul, no Rio Grande do Sul, a vinificação é feita por parcelas, mesmo que sejam uvas da mesma variedade e safra.
“Elas são colhidas em momentos distintos e, assim, podem revelar expressões diversas. Esses microlotes são posteriormente cortados, buscando o equilíbrio e a complexidade do lote final sem recorrer a ajustes artificiais”, explica Giovanni Carraro, diretor e enólogo da vinícola, ao NeoFeed.
“Embora pequenas variações entre safras possam ocorrer, elas são encaradas como uma característica positiva, uma assinatura do ano”, diz ele. “A baixa intervenção é um movimento que cresce porque o consumidor está mais informado e busca vinhos que tenham história.”