Nascido numa favela de Guarulhos, cidade da Grande São Paulo, e filho de uma diarista e de um ex-presidiário, Edu Lyra mostrou desde cedo sua capacidade de mobilização e de estabelecer conexões.
Esses traços vieram à tona, por exemplo, aos 23 anos, quando ele formou um time de 50 jovens para vender, de porta em porta, seu primeiro livro, “Jovens Falcões”.
Com o dinheiro arrecadado, Lyra reuniu três amigos para criar, em 2011, o Instituto Gerando Falcões. Fundada em Poá, município da região metropolitana de São Paulo, a ONG desenvolve iniciativas de impacto social em favelas e periferias de todo o País.
Para concretizar esses projetos, ele conquistou o apoio de grandes companhias, como Ambev, Gerdau e Visa. E atraiu os recursos e a atenção de empresários e executivos de peso. Do bilionário brasileiro Jorge Paulo Lemann ao indiano Satya Nadella, CEO da Microsoft.
Aos 32 anos, Lyra tem pela frente uma nova oportunidade para mostrar o seu dom de extrair bons frutos das dificuldades. “A Covid-19 colocou, definitivamente, uma lente de aumento sobre esses problemas”, disse ele, em entrevista ao NeoFeed, sobre a situação de extrema pobreza e vulnerabilidade de muitos brasileiros, agravada, agora, pela pandemia.
Para reduzir os impactos dessas pessoas, a Gerando Falcões criou a campanha “Corona no Paredão, Fome não”. A iniciativa busca doações de cestas básicas digitais, que serão convertidas em cartões, distribuídos aos moradores de comunidades em todo o País. Habilitados unicamente para a compra de alimentos e itens de higiene, eles serão carregados mensalmente, de abril a junho, com R$ 100.
Com o apoio de empresas como Ticket, Alelo e Accenture, em pouco mais de duas semanas, a ação arrecadou R$ 10,8 milhões, que irão beneficiar 170 mil pessoas em favelas de 14 Estados brasileiros. Entre os doadores, além de Lemann, figuram nomes como Abilio Diniz e David Feffer, da família controladora da Suzano.
Mais do que a ajuda necessária e imediata, Lyra enxerga que a pandemia, ao expor esses problemas, traz uma grande oportunidade: o entendimento de que, superada a crise, todos – governos, empresários e sociedade - devem se mobilizar para construir um país menos desigual. “O engajamento social pode ser um dos grandes legados dessa crise.” Em entrevista ao NeoFeed, Lyra falou sobre esse e outros temas. Confira:
Passado quase um mês de quarentena, como está a situação nas favelas e comunidades?
O quadro está perto do insustentável. Quase metade da população que vive em favelas é formada por autônomos, por empreendedores informais. É a cabeleireira, o mecânico, o eletricista, o pedreiro, que vende o almoço para comprar o jantar. Com o mercado fechado, a economia deles fica totalmente desestruturada. Além disso, eles não têm aquela matéria tão falada na Faria Lima: educação financeira. Não têm reservas. Não têm o que comer. E as crianças não estão indo para a escola, a demanda por comida aumenta. E aí tem pai, mãe e a decisão difícil de fazer isolamento social e morrer de fome ou ir trabalhar e correr o risco de morrer por conta do vírus.
Nesse contexto, como você enxerga o isolamento social?
Eu sou pragmático. Você tem a ciência. Precisa tomar decisões baseadas em evidências. É a mesma coisa. Você contrata um advogado e ele te fala: olha, li o contrato, não assina, não está justo. Você vai lá, assina e na frente tem problema. Se você tem advogado e não quer segui-lo, não tenha. É preciso tomar decisões com respaldo científico. Prefiro acatar a ciência e, no paralelo, trabalhar para alimentar a população mais pobre.
Como você avalia a atuação do Estado junto a essas comunidades mais vulneráveis?
Muitas pessoas estão totalmente desassistidas e abandonadas à própria sorte. Temos um Brasil que se aproxima muito mais da Bélgica, em um extremo, e outro país que se aproxima muito mais da Índia, nas periferias. As favelas são autogerenciadas. O Estado não está presente na maioria delas. Não há serviço básico de saúde, UPP (Unidade de Polícia Pacificadora), creche, escola, asfalto, saneamento, o mínimo de cidadania. Nós estamos ocupando as brechas que o Estado não ocupou.
O grande dilema é o que vamos fazer quando isso acabar. Não podemos voltar ao normal. Nosso problema é o normal"
Essas pessoas seguem invisíveis para boa parte da sociedade?
Não é que as pessoas não veem. Mas o vírus colocou, definitivamente, uma lente de aumento sobre esses problemas. Agora, todo mundo sabe o que nós vínhamos dizendo há muito tempo. Não tem saneamento, falta água potável, energia, acesso à internet, à educação de qualidade, à renda. Parece que todo mundo percebeu que não era mentira, que não era uma estratégia de comunicação. É fato. O Brasil é extremamente desigual. A distância entre quem tem mais e quem tem menos é brutal. E temos que endereçar isso. O grande dilema é o que vamos fazer quando isso acabar. Não podemos voltar ao normal. Nosso problema é o normal. A sociedade vai ter que ser muito mais engajada. Não basta votar e voltar para casa. Vai ter que se engajar e participar.
Você já sente essa mudança?
Eu recebi doação de quem nunca tinha doado na vida. A Covid-19 chacoalhou toda a sociedade, inclusive a classe média e a elite brasileira. O vírus mandou uma carta para os brasileiros que podem mais dizendo: nós precisamos atualizar o seu conhecimento sobre a sociedade. É um recall. É como um software. A consciência dos brasileiros está passando por uma atualização.
A pandemia também trouxe essa visão aos empresários? Há uma mudança de percepção entre eles?
Eu acredito que sim. É uma compreensão que todos precisam ter. O que acontece em qualquer comunidade pode refletir em todas as comunidades. Uma coisa que começou na China, chegou aqui. O problema que acontece em uma das favelas onde eu trabalho pode ser do Silvio Santos. Não tem escapatória. A vida nos colocou um limite ético. Os empresários, querendo ou não, vão ter que se engajar. Todos vão ter. O mais importante não vai ser colocar no LinkedIn o seu diploma em Harvard, e sim estar engajado, de fato, com as causas que você defende.
Como isso tem se refletido no engajamento desses empresários na campanha da Gerando Falcões?
Muitos estão participando. As doações foram iniciadas pelo Jorge Paulo Lemann. Tivemos também a contribuição de nomes como Abilio Diniz, Olavo Setubal Junior, Pedro Bueno (Dasa), David Feffer (Suzano) e Alex Behring (3G Capital). Quando convido os empresários, ouço muito mais sim do que não. Toda a sociedade está participando.
Como estão conseguindo mobilizar as pessoas? E quanto já arrecadaram?
Nós quebramos a marca de arrecadação por crowdfunding no Brasil. Abrimos uma plataforma digital, nos conectamos com empresas e temos transparência. Quem entra nas nossas redes sociais vê as entregas acontecendo. Alcançamos mais de 10 mil doadores, de 10 países, e mais de R$ 10 milhões. Com esse recurso, vamos distribuir mais de 30 mil cestas básicas digitais, por meio de um vale que vai ter recarga mensal de R$ 100. Vamos ajudar diretamente 170 mil pessoas, em mais de 200 favelas no Brasil, em 14 Estados. Ou seja, escala, tecnologia, governança e transparência. E trabalho em rede. Nos conectamos com empresas como Accenture, Zup, Ticket e Alelo. E temos a KPMG, que vai fazer a auditoria de todo o processo.
Quanto vocês pretendem arrecadar?
Estamos muito abaixo ainda. A meta é entregar 1 milhão de cestas básicas digitais. Para isso, precisamos de R$ 50 milhões. É um número ousado, mas isso estica a corda para fazer mais. Só que a meta não é minha, é de todos. Eu sou uma ponte. A sociedade vai bater essa meta? Essa é a pergunta. E eu respondo. Em momentos normais, a liderança é importante. Em momentos anormais, ela é fundamental. E a liderança genuína não é covarde. Quem tem acesso e deixa de fazer a coisa certa passa a acumular uma dívida com a sociedade. E lá na frente vai ser cobrado por isso.
"Os empresários, querendo ou não, vão ter que se engajar. Todos vão ter"
A Gerando Falcões está desenvolvendo ou planejando outras iniciativas?
A Covid-19 é uma situação excepcional. Nossa cultura é de longo prazo. Quando isso acabar, vamos ter que reconstruir o país. E só constrói quem tem visão de longo prazo e quem tem relacionamento. Então, eu quero até desafiar, ou melhor dizendo, encorajar grandes filantropos, doadores, voluntários. Vamos reconstruir. O engajamento social pode ser um dos grandes legados dessa crise.
E quais são os planos da ONG nessa direção?
Temos um projeto de expansão para impactar 1,2 mil favelas nos próximos quatro anos, acelerando ONGs na ponta, fazendo gestão dos recursos, uso de dados. Essas 1,2 mil favelas representam 20% das favelas no País. Temos o plano de modificar o País por meio delas. Meu sonho é colocar a desigualdade da favela no museu. Quero dialogar com o poder público e jogar luz sobre essas pessoas e lideranças nas comunidades.
Você está tendo alguma interlocução com o poder público nessa pandemia?
Eu conversei com todas as esferas do governo. Do governo do Estado, em São Paulo, ao governo federal, ao Congresso. Eu me posicionei. Esse é o meu papel. Não existe outro caminho. A grande lição que eu tomo, eu e muitos líderes sociais, é que ficamos muito longe da construção da política pública no País. Tão longe que olha o ponto em que chegamos.
E como você avalia a atuação do presidente Jair Bolsonaro e das demais esferas do governo nessa crise?
Ninguém estava preparado para essa crise. Nenhum governo estava. Federal, estadual ou municipal. Agora, o que eu espero, e não quero falar só do presidente, mas dos governantes como um todo, é que possam fazer coisas grandes. Porque o problema é muito grande.
Mas o que seriam essas coisas grandes?
Por exemplo, o governo liberou a questão da renda mínima, do pacote de ajuda de R$ 600. Mas nem todo cidadão sabe ler e escrever para baixar um aplicativo. Nem todo cidadão tem TV para ver as informações. Vamos ter brasileiros e informações que não vão se conectar. A ideia é louvável, mas a velocidade é questionável.
E o que pode ser feito para resolver essa questão?
Ao longo do tempo, precisamos ter uma revolução de dados e de tecnologia no governo. Precisamos saber onde estão e como vivem os brasileiros mais pobres. Muita gente não está no cadastro único, no Bolsa Família. Precisamos ter dados e velocidade. E isso é tecnologia. Os governos ainda são analógicos, enquanto o mundo é digital.
Mas, e no curto prazo?
É ajuda emergencial com renda para a população mais pobre e ir testando, dia a dia, como aumenta a velocidade. A cada dia que perdemos por burocracia, alguém pode morrer pelo caminho. O curto prazo é renda. E isso não é só o governo. É o governo e a sociedade. É o fundo eleitoral. É o funcionalismo público que ganha acima do teto e que poderia abrir mão dessa parcela.
Há tempos, o País vive uma intensa polarização e isso está sendo reforçado nessa pandemia. Como você avalia esse cenário?
Essa polarização, a ignorância, o ódio, esses muros destroem e matam vidas. As pessoas acham que só a corrupção mata. A falta de pragmatismo das nossas lideranças, de proposição, de diálogo, isso destrói as famílias nas pontas e retarda o desenvolvimento das pessoas. Nós precisamos derrubar os muros e construir as pontes. Precisamos de fazedores de pontes. Até agora, só temos construtores de muros. Isso começa lá em cima e se reflete na sociedade. Tudo é politizado, tudo envolve briga.
"Essa polarização, a ignorância, o ódio, esses muros destroem e matam vidas"
Muito se fala também dos interesses eleitorais. Como eles estão prejudicando o combate à crise?
Não é momento para oportunismo. O que diferencia um estadista de um político comum? O comum pensa na próxima eleição. O estadista pensa em transformar uma nação. Nesse momento, os estadistas estão nas favelas, nas donas Marias, em quem leva cestas básicas para as comunidades, nos líderes sociais que ajudam e alimentam quem é de direita e de esquerda. Quando eu arrecado doações, eu levo para quem votou no Lula ou no Bolsonaro, para o homossexual, o heterossexual, o preto, o branco. Estamos todos no mesmo barco e precisamos entender que só sairemos desse labirinto juntos.
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