No Japão, uma agência chamada Family Romance aluga substitutos para pai, mãe, filho, namorado, amigo ou quem mais o cliente quiser desde 2009. Uma mãe solteira pode contratar um ator da empresa para fingir que é o pai da sua filha, para que a garota não sofra mais bullying na escola, por exemplo.

São muitos os casos que levam os japoneses a procurarem a agência sediada em Tóquio. Dá para alugar amigos para fazer volume em casamento ou enterro ou mesmo substituir pai e mãe do noivo no altar, quando ele não se dá com os pais de verdade, mas quer ter o seu lado da família representado na cerimônia e nas fotografias.

O trabalho da Family Romance, que atualmente conta com mais de 2 mil empregados em seu banco de atores, foi a inspiração para o filme “Uma História de Família”. Uma obra de ficção com toque documental que estreou nos cinemas brasileiros na quinta-feira, 28 de outubro.

Dirigido pelo alemão Werner Herzog, o longa-metragem segue os passos de Yuichi Ishii, o fundador da Family Romance, que assume aqui diferentes papéis de aluguel. Inicialmente, ele seria apenas o consultor do filme, compartilhando o trabalho da agência e os episódios mais curiosos do seu negócio.

“Passei dois dias ouvindo as melhores histórias de Ishii. Com base nesses cerca de 60 casos que ele detalhou, escrevi um roteiro de ficção”, conta Herzog ao NeoFeed. “Como Ishii é muito bom no que faz, percebi que ele tinha que ser o protagonista, além de me ajudar a escalar os demais atores do elenco, que são todos de sua agência.”

Ishii decidiu abrir a empresa após fingir ser o pai do filho de uma amiga em reunião na escola. Daí, ele percebeu que não era tão simples bancar um parente postiço e que o serviço exigia treinamento dos atores para melhor atender esse mercado que explora a solidão, o preconceito e as desvantagens sociais.

E é isso que a Family Romance faz, preparando os atores para os diversos papéis que eles poderão assumir. Eles fazem um curso para entender melhor as dinâmicas familiares e ganham um texto de referência para estudarem antes de posarem de avô, pai, cônjuge ou o que quer se seja.

Não há um preço fixo para o aluguel de parentes na agência. O valor varia de acordo com o grau de dificuldade para o ator. Para se ter uma ideia, a taxa média é de US$ 200 por papel, por um período de quatro horas. Mas a quantia pode subir até US$ 1 mil, quando o postiço solicitado representa um caso mais complicado.

O nome com o qual a empresa foi batizada é uma referência a um ensaio de 1909, “The Family Romances”, assinado por Sigmund Freud (1856-1939). Nele, o pai da psicanálise explora a fantasia que as crianças criam de uma família perfeita, nos casos em a situação real deixa a desejar.

“Alugar um amigo ou um membro da família não é um negócio exclusivo do Japão, onde o número de agências do gênero vem crescendo”, afirma Herzog, que teve seu filme selecionado para o Festival de Cannes, antes da pandemia.

“Mas o Japão é o país onde isso virou um fenômeno. Em parte, por eles terem a maior população de idosos do mundo, fazendo com que sofram mais com a solidão, por muitos deles viverem sozinhos”, completa o diretor, lembrando que o serviço inclui visitas de familiares postiços aos idosos em casas de repouso.

Além de apresentar uma taxa de suicídio alta, o Japão ainda tem uma cultura em que as aparências e a opinião dos outros contam muito, o que faz o indivíduo evitar ao máximo qualquer constrangimento social. Existe ainda o preconceito contra crianças criadas apenas por um dos pais. Muitas delas sequer são aceitas nas escolas mais tradicionais e ainda sofrem bullying.

“Uma História de Família” começa com a história de uma garota de 12 anos que vai finalmente conhecer o pai. Na verdade, ela será apresentada a um ator, Ishii, que foi contratado por sua mãe. Ele pedirá desculpas por seu sumiço todos esses anos, com a justificativa de ter outra família.

O laço criado, apesar de falso, parece ter um efeito positivo sobre a menina problemática, que se sentia abandonada. Sem ter ideia de que se trata de um ator, a garota já se apressa em colocar fotos com o pai nas redes sociais, demonstrando orgulho.

“Antes de consideramos o serviço bom ou ruim, o fato é que a vida emocional de quem ganha um parente postiço parece melhorar. A história é fabricada, mas a emoção pode ser real”, diz Herzog, que resgata aqui um caso verídico. “A criança ficou, de fato, mais confiante e estável após encontrar o suposto pai.”

Ao longo da trama, Ishii é contratado como substituto para os papéis mais diversos. Ele precisa fingir de morto em um funeral com o caixão aberto e se passar por condutor de metrô que cometeu um erro grave. Na hora de levar a bronca do chefe, por partir com um trem-bala 20 segundos antes da hora estabelecida, o funcionário pede um dublê, escapando da vergonha.

Para Herzog, o serviço oferecido pela Family Romance vem ao encontro dos anseios da sociedade moderna. “Como está cada vez mais difícil distinguir o que é real do que é falso, é natural que isso se estenda às relações familiares”, afirma ele.

As redes sociais, como o Facebook e o Instagram, já tornam o nosso mundo mais artificial, na visão do cineasta. “Qual a diferença entre apresentar um parente postiço e criar as versões melhoradas de si mesmos que as pessoas mostram nas redes?”, pergunta ele.