Assim como nos Estados Unidos, o rock brasileiro nasceu mulher. Lá, só há pouco se começou admitir que quem o pariu foi Sister Rosetta Tharpe, bem antes de Bill Halley, Chuck Berry e Elvis Presley. Aqui, teve em Celly Campello sua primeira estrela, só que fugaz. Dos 15 aos 19 anos, a partir de 1959, lançou cinco álbuns e explodiu com Estupido Cupido e Banho de Lua, até mandar tudo para o alto e se casar. Caberia a Rita Lee, seis anos mais nova, pegar o cetro e dar ao rock nacional o formato de sua essência.
Rita morreu hoje, aos 75 anos, em casa, em decorrência de complicações no tratamento de câncer no pulmão, conforme a divulgação da família nas redes sociais "cercada de todo amor de sua família, como sempre desejou."
Desde a segunda metade da década de 1960, ela estava no lugar certo. E com ela o rock nacional se tornou contestador e, principalmente, divertido.
A loirinha com cara de menina de família de classe média paulistana que ela realmente era não demorou para ser o brilho maior do trio Os Mutantes, formado pelos irmãos Arnaldo Baptista e Sérgio Dias – com o primeiro, foi casada; com o segundo, paquerou, algo que só revelou nas suas imperdíveis memórias Rita Lee, Uma autobiografia, de 2016.
A roqueira que construiria uma carreira única na música brasileira, coerente do começo ao fim, só começou a despontar por sua personalidade forte e marcante, feminista sem levantar bandeira porque não dava espaço para tomarem o seu espaço, a partir do primeiro disco solo, o icônico Build Up, de 1970, quando ainda era dos Mutantes e com seu rosto desafiador. “Muito prazer, Rita Lee. Vai me encarar?”, parecia dizer.
Músicas de Rita Lee
Rita nasceu no tropicalismo, quando seu grupo acompanhou Gilberto Gil em Domingo no Parque, no célebre Festival da Record de 1967. Podia ter aderido ao rock adolescente da jovem guarda, mas foi atrás do psicodelismo da última fase dos Beatles e da música alucinógena de Jimi Hendrix, Janis Joplin e Jim Morrison – aquele trio que morreu de overdose aos 27 anos.
Depois, rendeu-se à vanguarda de David Bowie e à melancolia de Elton John. E o que se viu foi uma sequência hoje difícil de mensurar de grandes álbuns e uma coleção extensa de hits - "Ovelha negra" (1975), "Esse tal de roque enrow" (1975), "Agora só falta você" (1975), "Babilônia" (1978), "Mania de você" (1979), "Doce vampiro" (1979), "Lança perfume" (1980), "Caso sério" (1980), "Desculpe o auê" (1983), "Erva venenosa" (2000) e "Amor e sexo" (2003), entre outros.
Sem aderir a qualquer movimento, manteve-se longe do rock progressivo nacional dos anos de 1970, da geração Brock dos anos de 1980. Independente, construiu uma carreira consistente, com tiradas e atitudes inteligentes para se safar de situações em que se viu acuada, como a prisão por porte de maconha, em 1975, quando estava grávida de três meses de seu primeiro filho, Beto Lee, no dia 24 de agosto, pela Divisão de Entorpecentes bateu à porta de sua casa na Vila Mariana – e receberia a visita de Elis Regina na prisão.
No Carnaval de 2012, a cantora foi homenageada pela escola de samba paulistana Águia de Ouro. Um mês antes, após show no Rio de Janeiro, Rita anunciou que deixaria os palcos para sempre a partir do ano seguinte, o que realmente aconteceu. O anúncio foi feito no Twitter. Alegou estar se sentido fraca. Disse acreditar que o público que compareceu ao show do Circo Voador pôde perceber sua fragilidade. No palco, revelou ao público que precisava lidar com doenças por causa da idade e que não se importava em falar disso.
Na prática, não se aposentou da música, pois pretendia gravar ainda. No Twitter, escreveu que jamais se afastaria das canções: "Aposento-me de shows, da música nunca. Saio de cena absolutamente paixonadacocês". Desde então, deixou de pintar os cabelos e passou a viver reclusa em um sítio no interior de São Paulo. Ao assumir o grisalho, afirmou que gostaria de "ficar anônima".
Autobiografia da cantora, compositora, atriz e escritora
No sítio, Rita e Roberto viveram nos últimos nove anos rodeados da natureza e dos bichos, enquanto ela se dedicou cada vez mais a escrever livros sobre si e infantis. Na pandemia, escreveu em sua rede social: “Sou uma profissional [da quarentena]. E, de repente, me vi envelhecendo. E o envelhecer para mim foi uma surpresa, porque eu nunca fui velha na vida. Fiquei com vontade de viver minha velhice afastada dos palcos. Não dividindo isso com o público”.
A autobiografia talvez tenha sido a consagração da singularidade de Rita, quando causou espanto pela sinceridade com que falou de si mesma. Algo que talvez nem mesmo uma biografia não autorizada trouxesse, tamanha a honestidade nas histórias que revelou. Desde a infância na Vila Mariana, os relacionamentos com os irmãos Dias, a paixão por Roberto de Carvalho, a vinda dos filhos, as músicas e os discos clássicos; os tropeços e as glórias até decidir parar. O livro foi sucesso de público e de crítica.
Sua segunda autobiografia, em que relata sua luta contra o câncer, já era a mais vendida na pré-venda na Amazon, e será lançada em 22 de maio, dia de Santa Rita de Cássia, como queria a artista.
Nem as doenças a deixaram para baixo. Em outubro de 2011, Rita foi internada no Hospital Albert Einstein para uma cirurgia de vesícula, em decorrência de inflamação no pâncreas. Em maio de 2021, revelou que retirou as mamas, como medida preventiva contra o câncer – depois de perder a mãe para a doença. E brincou que a medida não fez a menor diferença, já que os seios sempre foram pequenos. Em abril de 2022, ela compartilhou a notícia de que estava curada.
Na época do politicamente correto, em que faltam ídolos populares que contestem regras, porém sem atitudes reacionárias, Rita Lee passou os últimos dez anos arregimentando uma legião de fãs das novas gerações, que colecionam seus discos como manifestos de irreverência e formas de levar a vida sem perder ou deixar de lado certa resistência ao comodismo. Um termômetro disso é a loja oficial da Universal Music, onde seus LP voltaram a ser vendidos – e fabricados. Foram cinco desde maio do ano passado.
Sem perder o bom humor de si mesmo, virou a vovó do rock, como ela mesma se autoproclamou. Para homenageá-la, em 2016, foi fundado em São Paulo o bloco carnavalesco Ritaleena, pela musicista Alessa Camarinha e a figurinista Yumi Sakate. O nome mistura a roqueira e o remédio ritalina, que controla hiperatividade e déficit de atenção. Ela, claro, adorou. Tinha tudo a ver com a cartilha que ela aprendeu a escrever a partir do modo como encarou a vida. Assim tinham de ser as roqueiras, ovelhas desgarradas.