As frases nos cartazes dos roteiristas de cinema e televisão que protestam pelas ruas de Los Angeles e Nova York resumem o espírito da greve da categoria. “Sem escritores, Meredith Grey não seria uma cirurgiã e Logan Roy ainda estaria vivo”, diz um deles, referindo-se a personagens consagrados (de Grey’s Anatomy e Succession), saídos da imaginação dos roteiristas.
Em outro cartaz, a frase “Não nos pague ninharia para escrever Billions’’ brinca com o título de uma das séries mais bem-sucedidas da Netflix, para exigir compensação financeira mais justa. “Eu ouvi dizer que IA (Inteligência Artificial) se recusa a tomar notas”, diz outro cartaz, alfinetando a nova ferramenta tecnológica usada pelos estúdios para montar roteiros e diálogos.
“A greve é lamentável, mas necessária”, diz ao NeoFeed Robert Bella, roteirista da última temporada do drama policial The Rookie, exibido desde 2018 pela rede ABC nos EUA. No Brasil, a série pode ser vista no Globoplay e no Paramount+, entre outros serviços.
“As corporações estão lucrando bilhões de dólares com as contribuições criativas dos roteiristas, mas não estão dispostas a dividir nem mesmo uma pequena fração dessa riqueza com os criadores de conteúdo”, comenta Bella. Ele tem participado dos piquetes pelas ruas de Los Angeles desde 2 de maio, quando a greve foi decretada.
A paralisação, que deve comprometer o andamento de filmes e das temporadas de séries, começou assim que foi expirado o contrato entre o sindicado dos roteiristas americanos, chamado Writers Guild of America (WGA), e a Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP), a associação das produtoras de cinema e TV. O contrato é negociado a cada três anos.
A principal reivindicação dos 11.500 roteiristas do sindicato é o aumento da remuneração e da bonificação pagas pelos serviços de streaming. Eles também reclamam do que chamam de “minissalas” de roteiristas (um experimento com roteiristas novatos que são logo descartados) e do conteúdo criado pelo assistente virtual gerador de conversas, conhecido como ChatGPT, que vem sendo usado para substituir os profissionais.
“Enquanto a Netflix espera gastar US$ 17 bilhões criando conteúdo em 2024, a soma total do aumento solicitado pelo WGA representaria menos de US$ 500 milhões. Ou seja, uma única empresa vai gastar US$ 17 bilhões produzindo o material dos roteiristas, mas toda a AMPTP se recusa a contribuir com meio bilhão”, afirma Bella.
Apesar do “boom” de streaming, principalmente com a pandemia, o sindicato calcula que o salário dos roteiristas sofreu queda de 4% nos últimos dez anos, o que representaria 23%, com o reajuste da inflação. Há ainda a questão dos direitos autorais que não está totalmente regulamentada no caso do streaming, impedindo que os roteiristas recebam bonificação adequada no caso dos programas mais populares e das reprises.
“No serviço de streaming, é muito mais difícil monitorar o sucesso, na comparação com o cinema ou com a TV, onde os ingressos vendidos na bilheteria e os índices de audiência são determinantes para os roteiristas receberem seus cheques residuais”, diz ao NeoFeed o roteirista e cineasta Steven Bernstein.
Ele é responsável pelas tramas dos filmes Unidas pela Vida (2013), protagonizado por Helen Hunt, e A Última Chamada, lançado digitalmente no Brasil no ano passado com John Malkovich, Rhys Ifans e Rodrigo Santoro no elenco.
Parte da justificativa da associação das produtoras, para não atender ao aumento da remuneração, é o fato de nem todas as plataformas de streaming darem tanto lucro quanto a Netflix.
“Alguns serviços dizem não estar tão bem, mas isso pode ser um pouco ilusório. Como eles estão investindo em ativos e comprando títulos para os seus catálogos, a sua perda é de curto prazo. Na verdade, eles estão acumulando capital”, afirma Bernstein.
Para os roteiristas, é injusto que o streaming se recuse a remunerar o setor proporcionalmente ao lucro obtido com o produto. “No início, eles eram considerados uma nova mídia. Sendo assim, o sindicato fez concessões nas negociações, na esperança de incentivar o crescimento desse novo mercado. Só que agora o streaming tomou conta. Seu alcance combinado supera o da indústria de entretenimento tradicional”, comenta Bella.
E essa questão não afeta apenas para os roteiristas, mas sim todo o setor criativo. Isso explica o apoio de outras categorias à greve. “Diferentemente da última greve dos roteiristas (iniciada em 2007), agora há uma unidade com os outros setores. Além da adesão de 97% ou 98% dos membros do sindicado dos roteiristas, os outros sindicatos também estão de acordo”, conta Bernstein.
A greve vai impactar o seu último trabalho, o filme GRQ, que ele roteirizou e dirigiu. “Estamos na pós-produção, fase em que normalmente refazemos ou mudamos alguns diálogos. Mas não tenho permissão para isso durante a greve, o que pode atrasar a finalização do meu filme, afetando a sua capacidade de gerar renda mais tarde”, acrescenta ele.
Para Bella, que também passou a atuar como diretor na série The Rookie, a insatisfação atual pode tornar esta greve pior que a de 2007. A paralisação anterior durou 100 dias, causando prejuízos calculados em US$ 2 bilhões, na época. “Após aquela greve, a economia de Los Angeles levou anos para se recuperar. Quando os roteiristas param, o restante da indústria também fica desempregado, fazendo o dano se espalhar, atingindo os restaurantes e a prestação de serviços.”
O pior da paralisação, segundo Bella, é acompanhar os gigantes do entretenimento seguirem arrecadando seus bilhões de dólares, enquanto o dinheiro some do bolso dos roteiristas, diretores, atores e técnicos. “Eles continuam lucrando graças às mesmas pessoas que desempregam.”