O economista Márcio Holland, professor da Fundação Getulio Vargas (FGV EESP) - onde coordena o cursos de Pós-Graduação em Finanças e Economia e o Observatório das Estatais - não esconde a decepção com o início de governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Segundo ele, a gestão começou de forma desastrada, criticando a taxa de juros elevada, as metas inatingíveis de inflação e o presidente do Banco Central, mas sem mostrar uma estratégia clara de como pretende imprimir uma política econômica de crescimento.
“Está parecendo tudo muito mais do mesmo, sendo que o mesmo já pode não funcionar tão bem quanto talvez tenha funcionado no passado”, disse Holland, na entrevista a seguir ao NeoFeed.
Com a experiência adquirida como secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda durante o segundo mandato do governo Dilma, Holland cita alguns exemplos do começo errático do governo. O arcabouço fiscal, segundo ele, não é sustentável no médio e longo prazo, pois não cumpre uma função essencial para a economia brasileira, que é a estabilização da relação dívida/PIB.
Para Holland, o governo busca reduzir a velocidade de crescimento do endividamento e um equilíbrio primário sem cortar os gastos, mas projetando um aumento de receitas para usar nos programa sociais. “O arcabouço virou um arranjo, uma arrumação de casa bagunçada, colocando muita coisa debaixo do tapete, tentando se acomodar de um jeito ou de outro”, afirma.
Também sobram críticas à autuação do Banco Central, que baixou os juros durante a pandemia e depois voltou a subi-los de forma apressada. “Foram choques negativos e positivos de juros muito atabalhoados”, diz. Ele adverte que, como efeito dessa corrida do BC atrás da curva de juros, a taxa real de juros não deve cair de forma relevante pelo menos até o meio do ano que vem.
Nem tudo, porém, desagrada Holland. A queda da inflação e o crescimento do PIB, que pode fechar o ano em até 2,5%, são ressaltados pelo economista. “A inflação está razoável para o padrão brasileiro, não atingindo o teto, está perfeitamente explicável “, afirma, apostando na consolidação do PIB num cenário de aprovação definitiva da reforma tributária no Congresso Nacional.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista.
Após seis meses, qual sua avaliação da política econômica do novo governo?
São seis meses de governo e já há sinais do seu DNA. Acho que é um governo que está tentando fazer uma concertação, um esforço grande de tentar arrumar a casa. Mas não passa a ideia de um governo que tem uma proposta clara de política econômica diferente. Ou seja, não é um governo que vem para dizer que vai reposicionar o Brasil, repensar trajetórias de longo prazo de crescimento econômico. Com isso, está correndo um risco muito grande de não deixar uma marca. Se tem uma estratégia de política econômica de crescimento, até agora não foi anunciada. O governo está perdendo tempo e oportunidade de anunciar quais são suas estratégias de médio e longo prazo.
Qual sua avaliação do arcabouço fiscal?
De pronto, acredito que o arcabouço não é sustentável no médio e longo prazo, não veio para ficar por muito tempo. Ele não cumpre uma função essencial para a economia brasileira, que é a estabilização da relação dívida/PIB. O que faz é reduzir a velocidade de crescimento do endividamento e a dimensão do déficit primário, visando a uma tentativa de equilíbrio primário e algum pequeno superávit no final do governo. Ou seja, nada suficiente para estabilizar a dívida. Virou um arranjo, uma arrumação de casa bagunçada, colocando muita coisa debaixo do tapete, tentando se acomodar de um jeito de outro.
"O arcabouço não é sustentável no médio e longo prazo, não veio para ficar por muito tempo"
O que o governo pretende com o arcabouço fiscal?
No Brasil, temos uma ansiedade de crescimento de curto prazo muito grande. Então, o governo precisa de espaço fiscal, que buscou não cortando gastos, mas projetando um aumento de receitas para fazer um Minha Casa, Minha Vida, o PAC, para reajustar salário de servidores públicos. O que ele pretende é aumentar a arrecadação e, portanto, a carga tributária, para acomodar novos gastos. Ou seja, vai tentar fazer o mínimo de primário com o aumento de receitas agora.
Falta firmeza no direcionamento da política econômica?
O novo governo começou muito bravo contra as discussões monetárias, contra a taxa de juros elevadas, contra as metas inatingíveis de inflação e contra o presidente do Banco Central. Tudo de forma atabalhoada e precoce. Portanto, não mostra que vai fazer nada diferente de estímulo à economia do que já foi tentado antes. Como essa medida de incentivar a compra de veículos populares, a redenção do Minha Casa, Minha Vida e do PAC. Está parecendo tudo muito mais do mesmo, sendo que o mesmo já pode não funcionar tão bem quanto talvez tenha funcionado no passado.
A decisão do Conselho Monetário Nacional de alterar o acompanhamento da meta de inflação, de ano-calendário para contínua, seguindo o padrão internacional, foi positiva?
O regime de metas foi instituído num período muito crítico, há 23 anos. É um modelo altamente rigoroso porque o Brasil tinha - e ainda tem - um histórico de não executar adequadamente boas práticas de política monetária, como vivemos nos anos 1980. Todos esquecem, mas o Brasil tem um histórico de baixa credibilidade – anuncia o que não cumpre. No caso fiscal, nem se fala: não são os resultados que seguem a meta, é a meta que segue os resultados. Deu um determinado resultado, muda a meta. Definir o aperfeiçoamento da meta, depois dessa longa história, faz todo sentido, já tem 23 anos. Mas não podemos afrouxar o compromisso de estabilização de preços.
"Todos esquecem, mas o Brasil tem um histórico de baixa credibilidade – anuncia o que não cumpre. No caso fiscal, nem se fala"
Os indicadores apontam uma queda consistente e regular da inflação. O que pode atrapalhar essa trajetória de queda?
Tivemos uma queda muito boa de preço de alimentos e alguma de preços administrados, em grande parte por conta da safra agrícola deste ano, que puxou o PIB brasileiro. Vamos ter agora uma recuperação nas taxas de inflação acumuladas nos últimos 12 meses. A gente sai de 3,94% e à medida que vão passando os meses começa a ter uma pequena recomposição para algo entre 4,5% e 5%, sendo bem otimista. Está razoável para o padrão brasileiro, não atingindo o teto está perfeitamente explicável. O Brasil está achando o seu novo equilíbrio. Mas a inflação do Brasil ainda não é uma vitória a ser conquistada para este ano e ano que vem.
O BC sinalizou que poderá dar início ao ciclo de redução dos juros em agosto. Por que a Selic continua tão elevada, se comparada com outros países, que têm inflação mais alta e juros menores?
Acredito que o Banco Central reduziu muito fortemente a taxa de juros a 2%, em agosto de 2020. Foi uma redução muito acelerada e não precisava de tanto. Até o início de 2021, tivemos taxa real de juros negativa no Brasil de 2%. E não era a política de juros que estava estimulando a economia por conta dos impactos da Covid, mas as transferências de recursos. Então, houve um erro no excesso de afrouxamento monetário. O que o País precisava não era de juro menor para crédito, e sim de dinheiro. Havia falta de capital de giro, de recurso, e não de financiamento.
O BC errou a mão na política monetária?
O Banco Central tentou consertar esse erro a partir de meados de 2021, mas de forma muito acelerada. Foi quando o BC correu atrás, até essa taxa de juros chegar a 13,75%. Então, foram choques negativos e positivos de juros muito atabalhoados. Poderiam ter sido mais suavizados, reduzindo menos numa fase e não ter subido tanto na segunda fase. Na última reunião do Copom, o BC poderia dar uma sinalização de que em agosto se iniciaria um ciclo parcimonioso de afrouxamento monetário. Mas perdeu a chance de fazer isso, apontou a divergência (na ata do Copom) e deixou o mercado ainda mais incerto sobre o futuro de comportamento do Banco Central. Acho que o BC errou na comunicação.
"BC poderia dar uma sinalização de que em agosto se iniciaria um ciclo parcimonioso de afrouxamento monetário. Mas perdeu a chance de fazer isso"
Qual o efeito dessa falha de comunicação?
Era um detalhe adicional para fazer as contas. Digamos que o BC vai reduzir um ponto percentual da Selic até o final do ano, de forma parcimoniosa. Ela cai para 12,75%. Com inflação rodando entre 4% e 5%, a taxa real de juros será igual ou maior no final do ano. Acredito que a taxa real de juros não deve cair de forma relevante pelo menos até o meio do ano que vem. Com a inflação caindo para abaixo de 4%, para ter uma taxa real de juros de 5% teria de jogar essa Selic rapidamente para aproximadamente 9% ou algo próximo a isso. Seria uma redução muito acelerada ao longo do ano que vem. Ou seja, corremos o risco de o BC continuar correndo atrás da curva de juros em 2024.
A previsão de crescimento do PIB começou o ano próximo a 0,8% e já está em 2,14%. O que é mais provável: o PIB fechar 2023 em torno de 2% ou na faixa de 1%?
Estranho falar isso, mas em economia o segundo semestre é maior que o primeiro... Por exemplo: o segundo semestre tem 13º salário e um governo mais apressado com as medidas de estímulo, como PAC e etc. É possível colher um pouco mais os resultados agora no segundo trimestre, do estímulo a automóveis. Gostando ou não dessas medidas, elas acabam gerando algum estímulo no curto prazo, é possível até um crescimento econômico de 2,5% este ano. Isso num cenário otimista, aprovando no Congresso em definitivo a reforma tributária.
O governo Lula praticamente esvaziou a Lei das Estatais. Por que o debate sobre a privatização continua contaminado depois de tantos anos?
Cheguei a ter a ingenuidade de achar que esse era um debate que saía do técnico e ia para o ideológico. Hoje, para mim, está claro que a questão das estatais é muito mais um problema do presidencialismo de coalizão do Brasil. É preciso cargos para distribuir para ter apoio político, e quando o governo vende estatais perde essas bases de apoio. Imagine a nomeação de centenas de conselheiros para Eletrobras e Banco do Brasil, além de todas as empresas que o Banco do Brasil investe. Se não tiver cargo em estatais, vai ter de distribuir orçamento secreto. Infelizmente, o problema não é de posicionamento teórico-técnico versus ideológico, é muito mais da estrutura política brasileira de repartição de cargos.
"A questão das estatais não é uma discussão técnica ou ideológica, é um problema do presidencialismo de coalizão do Brasil. É preciso cargos para distribuir para ter apoio político"
O projeto de reforma tributária teve alterações no Congresso. Até que ponto esse substitutivo vai dificultar a aprovação da reforma até julho, como quer o governo?
Ninguém discorda da necessidade de fazer uma reforma tributária, nem que o IVA é a melhor forma de tributação sobre consumo. O problema é que não é tão trivial assim. Primeiro, porque o IVA é altamente regressivo e o Brasil pode ter um dos maiores IVAs do mundo. Ele deverá ficar entre 25% e 30%, sendo que a média da OCDE é de 19,2%. Isso porque a carga tributária brasileira é predominantemente sobre consumo. O Brasil não tributa a renda, em parte porque acha que a renda brasileira é baixa, não vai ter de onde sair dinheiro. Nem tributa a propriedade porque vai afetar o setor rural, que é o ITR. Então, a gente fica procurando tributar o consumo, aumentando a regressividade do sistema tributário.
Como resolver isso?
Não é trivial. Se criarmos uma alíquota diferenciada, como foi anunciado pelo relator, de 50% sobre o IVA para alimentos, vai gerar distorções do mesmo jeito que a desoneração da cesta básica – rico vai ter redução de tributos sobre carne de primeira, óleo, e etc. Não é uma solução. Outra ideia, que não é boa, é esse conselho dos estados. Vai tirar autonomia dos estados. Do jeito que foi redigido é inacreditável. Um ex-aluno meu, o Felipe Salto (ex-secretário da Fazenda de SP), diz que essa proposta beira à sandice - cria um conselho superior ao Fisco Estadual. Outros problemas: como fazer o cashback e o dinheiro para os fundos, os de compensação de covalidação de benefício do ICMS e de desenvolvimento regional? Para onde vai e de onde vai sair esse dinheiro? De alíquota maior do IVA e de maior carga tributária sobre o consumo.
O novo governo assumiu com a bandeira de defesa da Amazônia. Falta estruturar política pública?
Ainda não estruturou, mas a expectativa é grande. A ideia de retomar agenda ambiental de mudança climática, de reduzir essa velocidade do desmatamento, de desfazer toda essa confusão que foi construída nos últimos quatro anos é positiva. Mas ainda não apresentou um plano de voo. Basta ver a questão da exploração do petróleo na Foz do Amazonas. É inacreditável o assunto chegar ao nível de Ibama versus Petrobras. O governo não fala se quer ou não explorar. O Brasil precisa de um plano para Amazônia que não é somente um plano de estancar o desmatamento, de recobertura da floresta, de pagamento por serviços ambientais, de como valorizar a floresta para beneficiar quase 30 milhões morando na Amazônia Legal. A logística é o ponto zero. Não há infraestrutura de conectividade. O Brasil tem dado as costas para a Amazônia há décadas. Ótimo que essa agenda voltou. Mas está na hora de apresentar uma proposta definitiva para Amazônia brasileira.