“Depois de Steve: como a Apple tornou-se uma companhia de um trilhão de dólares e perdeu sua alma” seria a tradução literal do nome do livro que, em português, ganhou título bem mais amigável à mitológica empresa de tecnologia: “A Apple após Steve Jobs: como a busca por excelência e rentabilidade redefiniu a maior empresa de inovação de todos os tempos”.

A tradução, porém, não trai o espírito da obra do jornalista do The New York Times Tripp Mickle, ex-Wall Street Journal, lançada agora, com quase 500 páginas, pela Benvirá. Traduzido por Cristina Yamaguchi, o livro, com grande riqueza de casos e detalhes da trajetória da empresa e de seus principais executivos, acomoda perfeitamente os diferentes pontos de vista expressos pelos dois títulos.

Dois personagens, ambos escolhidos a dedo por Steve Jobs para funções estratégicas, incorporam os ângulos pelos quais pode ser contada a história da Apple - e a sucessão de histórias da firma que amealhou legiões de fãs com suas inovações surpreendentes - hoje, explorando com maior ênfase a oferta de serviços, e com planos de fabricar carros elétricos autônomos.

A “alma” da Apple tem como representante o principal designer da empresa, Jony Ive, parceiro de Steve Jobs nas invenções que a tiraram do rumo à falência, no fim dos anos 1990, numa sucessão de produtos icônicos que começou com o iMac. Já Tim Cook, sucessor de Jobs após a morte deste, em 2011, por um devastador câncer de pâncreas, é o responsável pela “redefinição” da empresa.

Foi Cook quem levou a Apple a crescer exponencialmente, adaptando-se à nova conjuntura, de cobranças de acionistas, desafios logísticos e riscos à imagem pública com temas como imigração, a rivalidade China-EUA e problemas de privacidade dos usuários.

Ive, obcecado pelo design e com apurado gosto estético, foi uma figura crucial na virada que tirou a empresa da rota de falência e a transformou em ícone de inovação mundial e da sofisticação no design. Cook, um lacônico e disciplinado gestor, formado em engenharia industrial e com raro talento para buscar processos mais eficazes e gerenciar fornecedores, colocou a Apple no topo do mundo empresarial.

O autor, Mickle, mostra grande simpatia por Ive, de quem descreve a infância de gênio criativo, capaz de espantar professores por soluções de design atraentes e, ao mesmo tempo, fiéis aos ideais minimalistas do funcionalismo alemão. As descrições dos desafios técnicos para realizar as ideias de Ive estão entre as melhores do livro.

Interessados no tema certamente vão se deleitar com os relatos sobre o desenvolvimento de produtos liderados pelo designer e supervisionados, com senso crítico aguçado, por Jobs. Eles incluem detalhes exóticos, como (no espírito defendido por Jobs, de um computador que “remetesse à alegria”) a inclusão de uma alça no gabinete do primeiro iMac, não para transportar o equipamento, mas para compelir as pessoas a tocarem na máquina.

Também sobra admiração e respeito, porém, na rica descrição sobre como Cook, a partir de sua experiência bem-sucedida administrando cadeias de suprimento e planilhas de custo, liderou a transição que levou a Apple a tornar-se uma corporação global com milhões de empregos diretos e indiretos e dezenas de bilhões de receita.

Mickle reconhece que, na enorme multinacional liderada por Cook, acompanhada de perto por incontáveis acionistas e analistas do mercado financeiro, seria impossível prosseguir com o estilo Jobs de gestão, com um chefe genial à frente de um pequeno grupo de executivos, não só responsável pela última palavra na aprovação dos produtos, como pela intuição sobre que caminho tomar no desenvolvimento das ideias de sua equipe criativa.

Com Jobs e Ive no topo da empresa, a busca de boas ideias e qualidade do produto tinham prioridade, e, nas decisões estratégicas, peso bem menor era atribuído os custos e dificuldades técnicas para concretizar as ideias da dupla.

Ao assumir a Apple, Cook concentrou-se em cortar custos, aperfeiçoar a cadeia de suprimentos e simplificar a linha de produção

Ao assumir a Apple, em um momento delicado no mercado para seus celulares, Cook, desajeitado em aparições públicas, sem o charme e desembaraço do antecessor, concentrou-se em cortar custos, aperfeiçoar a cadeia de suprimentos e simplificar a linha de produção. A pesada estrutura da multinacional afetou o ânimo de seus designers, muitos dos quais debandaram para outros projetos - Ive, inclusive.

O livro recupera o enorme folclore sobre as equipes da Apple, que ajudou a consolidar a imagem da empresa como um lugar especial. Há anedotas como a história de um executivo que, instado por Cook a verificar in loco um problema de fabricação na China, deixou uma reunião, tomou o carro para o aeroporto e viajou apenas com a roupa do corpo.

Ou os interrogatórios a que Cook submetia seus subordinados, recolhendo informações para decisões que Jobs, antes, assumiu intuitivamente. Ou, ainda, a iniciativa de Ive, de separar uma equipe da turma de design para redesenhar as torneiras do lavatório de seu jato particular, que o desagradavam.

Descrito em tons pouco generosos no início do relato de sua atuação na Apple, Cook, ainda que apareça como um executivo com pouco interesse no aspecto criativo dos produtos da Apple, ganha referências mais amigáveis ao correr das páginas, na medida em que se descreve sua adaptação ao papel de celebridade do mundo de negócios e “diplomata” encarregado de operações globais.

É particularmente notável a maneira como Cook administrou os conflitos entre China e Estados Unidos, especialmente na gestão de Donald Trump, presidente mercurial que o executivo conquistou anunciando investimentos e empregos já planejados anteriormente como resposta à exigência trumpista de estímulos a empregos e investimentos nos EUA.

Conseguiu até cancelar uma taxa de importação sobre seus produtos fabricados na China, país que também lhe trouxe sérios desafios, descritos no livro.

Mickle exibe com bons exemplos o pragmatismo e cancha política de Cook, ainda que lamente a maneira como o CEO da Apple acabou colocando em segundo plano os esforços e talento de seus designers para criar novidades espantosas capazes de modificar a vida cotidiana.

O autor não traz relatos, contudo, dos problemas logísticos criados pelas quarentenas na China nas fábricas onde se localiza ainda boa parte da produção da Apple, que vem diminuindo sua dependência do país também por outro motivo: o viés mais nacionalista e controlador do líder Xi Jinping.

De uma forma geral, os leitores vão ser fartamente atendidos com informações sobre idas e vindas que garantem à Apple um destaque todo especial nesses primeiros anos do século XXI.

Capa do livro

Serviço:
"A Apple após Steve Jobs:como a busca por excelência e rentabilidade redefiniu a maior empresa de inovação de todos os tempos"
Tripp Mickle
496 páginas
Impresso: R$ 68,90
Editora Benvirá