VENEZA - Há quatro gerações, a família Troisgros se dedica à arte culinária. Seja na França, onde o restaurante do clã consegue manter as três estrelas conquistadas no Guia Michelin há 55 anos. Ou no Brasil, onde Claude Troisgros, radicado no país desde os anos 1980, firma o nome e o legado gastronômico da família além da França.
“As coisas aconteceram naturalmente. Não há receita para manter uma família no mesmo negócio há tanto tempo”, conta Michel Troisgros, no documentário “Menu Plaisirs – Les Troisgros”, tentando explicar a um cliente a dinastia no ramo da gastronomia.
Irmão de Claude, Michel, com 65 anos, que representa a terceira geração à frente do restaurante fundado em 1930, continua ativo, mas passou o bastão de chef ao filho César, com 36 anos.
“Como os meus pais tiveram uma experiência maravilhosa na cozinha, segui pelo mesmo caminho. O ambiente familiar conta muito na evolução, na percepção e no despertar do paladar”, afirma Michel, no filme ainda sem data para estrear no Brasil.
O documentário acaba de fazer a sua première mundial, fora de competição, nesta 80ª edição do Festival de Cinema de Veneza. O evento, um dos maiores do mundo no gênero, será encerrado neste sábado, dia 9, às margens do Mar Adriático.
“Desde os meus avós, é uma longa história de alto nível gastronômico, técnico e de sabor”, diz Claude, ao NeoFeed. O chef de 67 anos se refere ao casal Jean-Baptiste e Marie, que passou a comandar um hotel em frente à estação ferroviária de Roanne, na década de 1930, e abriu um pequeno restaurante – batizado, mais tarde, de Maison Troisgros.
Hoje a casa tem novo nome, Le Bois sans Feuilles, e novo endereço, em Ouches, a oito quilômetros de distância do restaurante original.
Claude e Michel são filhos de Pierre Troisgros, que ao lado do irmão, Jean, ajudou a revolucionar a gastronomia. Em 1968, o guia Gault & Millau cunhou o termo “nouvelle cuisine” francesa, com base no restaurante comandado pelos irmãos, eleito o melhor do mundo naquele ele.
“Como o meu pai foi um grande chef dos anos 60 e 70, ajudando a criar uma nova cozinha francesa, ao lado de outros nomes da época (como Paul Bocuse), eu e meu irmão convivemos com a gastronomia desde pequenos. Temos isso no sangue”, conta Claude, com cinco restaurantes no Brasil.
São quatro casas no Rio de Janeiro (Mesa do Lado, Cantina do Claude, Chez Claude e Bistro do Quartier) e uma em São Paulo (também chamada Chez Claude). “Meu filho também faz parte da quarta geração”, comenta Claude, referindo-se a Thomas. O chef de 41 anos comanda a rede T.T. Burger e está prestes a inaugurar dois restaurantes.
Nem Claude nem Thomas aparecem no filme “Menu Plaisirs”, por se tratar do cotidiano dos Troisgros na França, onde toda a história começou. São mais de quatro horas de imagens em que o documentarista Frederick Wiseman faz um registro de todas as atividades da família no ramo.
Isso inclui as visitas ao mercado em busca de alimentos frescos, o trabalho na horta da família, na fazenda de gado, na fábrica de queijo e no vinhedo, além da preocupação com a biodiversidade. O espectador acompanha desde a criação, a preparação e a apresentação dos pratos até a recepção e o feedback dos clientes.
Claude não se importou em ficar fora das filmagens. “Já foram feitos documentários sobre a família, um nome muito forte no mundo da gastronomia. Não há motivo para repetir a passagem do restaurante de uma geração à outra ou contar de novo a minha história no Brasil ou a da minha irmã, Anne-Marie, em Bordeaux (onde ela teve restaurantes até 2014)’’, afirma ele.
Em vez de seguir a cartilha dos documentáros, com depoimentos que tentam explicar o sucesso de quem é biografado, “Menu Plaisirs” simplesmente mostra os Troisgros em ação. Não há testemunhos para a câmera. Esta apenas registra o que acontece em um dia normal de trabalho – dando a impressão de que os membros da família até tinham se esquecido de que a câmera estava ali.
“Fiquei feliz quando o meu irmão comentou que o filme seria feito. É muito mais interessante um documentário sobre a filosofia dos Troisgros, sobre a valorização do produto, a preferência pelos pequenos produtores, a técnica apurada, a relação com o bem-estar e tudo o que há de mais delicado e refinado na nossa profissão, que é uma arte”, comenta Claude, mais conhecido por valorizar os produtos brasileiros na culinária, usando técnicas francesas.
Claude ainda não viu o filme. Houve apenas uma sessão exclusiva para a família na França, em abril. “Eles acharam que eu capturei bem a rotina dos Troisgros. Meu interesse está em justamente desvendar a complexidade do tema em questão. Jamais simplifico, no sentido de atingir um público maior”, conta o diretor Frederick Wiseman, de 93 anos, ao NeoFeed, em Veneza.
Com mais de 50 documentários na bagagem, ele já fez raios x da Nacional Gallery de Londres e da Biblioteca Pública de Nova York, entre outras instituições. “Quem me conhece sabe que eu só filmo se for para mergulhar profundamente, explorando tudo o que for possível. Daí imagino ninguém esperar que um filme de gastronomia vá explicar como cozinhar um salmão”, diz Wiseman, rindo.