Na década de 1980, a família Torres, que detém bodegas na Espanha das mais prestigiadas do mundo, deu início a uma caçada científica e inusitada. Foram em busca de recuperar cepas praticamente extintas na Catalunha, onde a saga familiar se iniciou em 1870 em Penedès.
“É um resgate do nosso passado, da nossa cultura e a manutenção da diversidade genética das uvas da Catalunha”, disse Miguel Torres Maczassek, ao NeoFeed, presidente da vinícola e quinta geração dos Torres na produção de vinho. Ao lado da irmã Mireia Torres Maczassek, diretora de inovação, ele comanda o projeto "joia" da vinícola.
Há 40 anos, de forma nada usual, seu pai Miguel Agustin Torres, à frente da vinícola na época, colocou anúncios no jornal local para encontrar as plantas que se distinguissem das variedades cultivadas na região, como Tempranilo e Garnacha. Convocava produtores a apontar em seus parreirais o ser alienígena. Ou ainda que indicassem videiras isoladas, perdidas, em meio aos bosques.
Por meio de ligações telefônicas, eles resgataram e montaram um acervo de plantas “selvagens”. Extraíram o DNA e mapearam 50 espécies catalãs que existiam antes da praga da filoxera, que dizimou as produções da Europa no século 19. Algumas delas remontavam os fenícios, que ocuparam a península e, digamos, “lançaram” o vinho por lá há milhares de anos.
Do cultivo inicial in vitro partiram para a prova no campo, um experimento minucioso para descobrir onde e com qual técnica cada uma se adequaria melhor. Da experiência de décadas, seis cepas mostraram potencial para fazer vinhos.
“Redescobrimos a nossa história e percebemos que nossos antepassados bebiam muito vinho mas nem sempre bons. Ficamos só com as cepas de melhor qualidade.” São elas Forcada, Moneu, Querol, Garró, Pirene e Gonfaus.
Em setembro deste ano, Miguel Torres veio a São Paulo apresentar as safras de vinhos que levam as uvas "sumidas no tempo" como as tintas Pirene e Moneu e a branca Forcada. Dessa última, com 100% da variedade, conseguiram produzir apenas 1.458 garrafas da safra de 2021. A importadora Cantu, representante da vinícola espanhola no Brasil, espera conseguir alguns exemplares para o Brasil no próximo ano.
“São vinhos muito particulares que num primeiro momento vão ser apreciados por um público que gosta de provar coisas únicas”, disse Torres, durante a degustação em São Paulo.
Um dos vinhos disponíveis no Brasil que leva as variedades resgatadas em sua composição é o Clos Ancestral 2021 (R$ 200) com uma fração de Moneu, que está sendo distribuído pela Cantu em restaurantes estrelas Michelin como Dom e Maní, em São Paulo, e Oro, no Rio.
O primeiro vinho a ter as cepas ancestrais em seu blend foi o Grands Muralles de Torres com uma pequena parcela de Garró adicionada a castas tradicionais na região, Cariñena e Garnacha, em 1996. Dois anos depois, a Querol também foi adicionada a composição. A Gonfaus, por sua vez, faz parte do corte de outro vinho, o Purgatori de Torres.
A família agora parte para resgatar castas ancestrais em outras regiões das Bodegas Torres e Jean Leon, na Espanha, e também no Chile, país em que instalaram a Miguel Torres na década de 1970, pioneiros como estrangeiros a investir em vinhos naquele país.
No processo do experimento na Catalunha, eles descobriram que as cepas antigas são muito mais resistentes ao calor e a seca. Ou seja, mesmo sendo ancestrais, são adequadas aos desafios impostos hoje pelo aquecimento global. E assim, compartilharam com viticultores locais suas descobertas para que eles também se beneficiem das vantagens das castas.
“Vamos ampliar a área de produção da Forcada, por exemplo. Todo nosso processo de produção hoje é pensando no futuro, nos próximos 100 anos. E as cepas ancestrais têm grande resistência para os desafios climáticos.”
"Mensagem de esperança"
Há décadas, a família adota “práticas ecológicas no cultivo porque quanto mais se cuida da terra, mais se produz vinhos”. Em 2008, a família assumiu o compromisso da redução da pegada de carbono, e atingiu o percentual de 36% no ano passado com o uso de energia solar e de biomassa. A meta é reduzir o CO2 em 60% até 2030.
“Mas só esse compromisso não é suficiente. Assim como só ser orgânico também não é. A monocultura com tempo empobrece o solo e o ambiente. Por isso passamos a adotar as práticas de viticultura regenerativa”, conta Torres.
Isso significa deixar que outras plantas nativas cresçam entre as videiras, permitindo uma melhor cobertura do solo e ajudando na captação do CO2. Em muitas áreas a terra não é preparada com tratores, mas com arados como antigamente.
E animais como ovelhas podem pastar por ali, fazendo a “poda natural” do que antes seria considerado como “erva daninha.” Dessa forma, todo o ecossistema se recompõe, do solo ao aumento das populações de abelhas e pássaros, por exemplo.
Em sua visita a São Paulo, Torres apresentou o selo de viticultura regenerativa da Espanha que está sendo estampado nos vinhos da família. Já são 1,1 mil hectares de vinhas orgânicas sendo convertidas em viticultura regenerativa na companhia. Uma associação, capitaneada por ele, reúne hoje 40 produtores na Espanha que estão adotando as mesmas práticas.
No ano passado, a empresa alcançou o faturamento de 260 milhões de euros e deve repetir o mesmo resultado este ano. Torres diz que toda inovação, “assim como o Tesla”, exige muito investimento no início, mas depois se alcança o equilíbrio. E o mesmo já está acontecendo com a viticultura regenerativa. “É uma mensagem de esperança.”