PARIS - O meio gastronômico francês está em frenesi desde que foi anunciado oficialmente o guia Michelin 2023, cuja premiação aconteceu na segunda, dia 6. O vai e vem de estrelas é algo normal, todos os anos gera ansiedade e, raramente, destrona ícones. Mas, neste ano, o inesperado aconteceu.
O consagrado Guy Savoy, vedete da cozinha francesa contemporânea, que carrega o título de “melhor cozinheiro da França”, teve seu reinado abalado ao perder a terceira estrela ostentada desde 2002 no restaurante Monnaie de Paris, que está em segundo lugar na La Liste dos melhores do mundo. Altivo e sem perder a classe, o chef declarou que no ano que vem terá sua estrela de volta.
Entre os que mantiveram seu reinado está Eric Frechon, de 59 anos, veterano, que tem três estrelas desde 2009 e, de nove anos para cá, acumula quatro estrelas: três no Epicure e uma na Brasserie 114 Faubourg, restaurantes do Le Bristol, um dos doze hotéis-palácio da capital francesa.
Quando ocorre uma mudança importante na galáxia gastronômica, como essa que acaba de acontecer, quem se mantém no pódio respira aliviado e evita tocar no assunto, embora seja um tema incontornável no meio "fooding".
Foi com toda a diplomacia e mais um pouco, que Frechon comentou o que ocorreu com Savoy, em entrevista ao NeoFeed: “Isso nos lembra que as estrelas Michelin pertencem apenas à Michelin e que você sempre deve estar em permanente guarda”, disse, sem citar o nome do colega.
“Isso nos lembra que as estrelas Michelin pertencem apenas à Michelin e que você sempre deve estar em permanente guarda”
“Um restaurante icônico pode perder suas estrelas, assim como os restaurantes mais novos. Foi uma mensagem forte. Estamos triplamente felizes em manter nossas estrelas, mas estamos dobrando nossa vigilância e concentração”.
Na visão dele, ter quatro estrelas é uma responsabilidade permanente, que o obriga a manter a criatividade e a estar sempre inovando. Ainda mais pelo fato de comandar um endereço clássico como o Le Bristol, que fica próximo ao palácio do governo, num bairro aristocrático de Paris, e que conserva uma clientela tradicional.
Fiel ao estilo da época, o art decô, o hotel foi inaugurado em 1925 em plenos “Anos Loucos” e até hoje tem uma agenda movimentada pelos principais eventos da cidade.
Uma das inovações que está à frente é a abertura de uma "epicerie", uma butique gourmet, que vende produtos fabricados ou utilizados ali. Frechon explica que as dificuldades econômicas decorrentes da Covid 19 fizeram com que o hotel fosse autorizado a vender no esquema delivery para sobreviver à falta de público, o que jamais havia acontecido.
"Foi uma mensagem forte. Estamos triplamente felizes em manter nossas estrelas, mas estamos dobrando nossa vigilância e concentração”
O sucesso das vendas e a demanda do público deram origem a esse novo espaço, onde antigamente se faziam eventos, e que foi reformado num estilo chique-clássico para funcionar regularmente como um canal de venda direta.
Na Epicerie du Bristol há pães feitos com fermento levain, chocolates, patê e outros produtos que são caros ao chef: sobremesas e mel produzidos ali. Há também trufas, salmão defumado e caviar francês de Sologne, produzido através da piscicultura local de esturjões, o único que Frechon usa. Enfim, a butique é um mini paraíso de delícias que se complementa com os doces de Yu Tanaka, o chef pâtissier do hotel.
Frechon, que ocupa o cargo de chef-executivo comanda uma equipe de 110 cozinheiros. Só no Epicure, o restaurante gastronômico que atende 40 comensais apenas à noite e funciona de terça a sábado, trabalham entre 20 e 30 pessoas. É bastante, não? “Não”, responde ele, rindo. “A gente gostaria de ter mais”.
Frechon comanda uma equipe de 110 cozinheiros. Só no Epicure, o restaurante que atende 40 comensais apenas à noite, de terça a sábado, trabalham entre 20 e 30 pessoas. É bastante, não? “Não”
Outro destaque que o projeta na cena estrelada, é o fato de poder contar com o único moinho de Paris para produzir sua própria farinha. Numa sala, no backstage de serviço, há um pequeno moinho de madeira, onde são processados diariamente oito tipos de trigos antigos, que não passaram por seleção genética e foram escolhidos “criteriosamente entre os melhores do mundo”, diz Frechon.
“Nosso desejo de trabalhar com trigos antigos, verdadeiramente saudáveis, sem aditivos, foi o que nos levou a montar um moinho numa sala do hotel. Queríamos recolocar o pão num lugar nobre e poder fazê-lo com uma farinha própria. Nossas quantidades são limitadas”, afirma. "Conseguimos produzir, no máximo, 80 quilos de farinha por dia com o moinho que temos, é praticamente uma produção para cada dia".
Já o 114 Faubourg, estrelado desde 2014, é um restaurante mais casual dentro do universo do luxo, que tem clientela dos escritórios vizinhos no almoço e, à noite, um público variado, que vai de gente ultra produzida a quem chega de tênis e moletom. O gerente é o português Filipe Fernandes, que está lá há 11 anos e como o lugar é bastante frequentado por brasileiros, o português é uma língua habitual.
O Faubourg é mais na linha bistronomie e mantém alguns clássicos no cardápio como a sopa de alcachofra com foie gras e trufa negra que tem sua versão vegetariana, sem foie gras. Sem modéstia, Frechon diz que o lugar não só mantém constância, como está cada vez melhor”. O preço médio de uma refeição é 104 euros. Já no Epicure, o restaurante gastronômico três estrelas, o menu com harmonização de vinhos para duas pessoas custa 1.230 euros.
Mesmo com esse valor, o Epicure tem reservas extremamente antecipadas. Ao falar no universo dos restaurantes e de seu alto custo, Frechon dá sua visão do que sucedeu ao Noma, de Copenhagen.
Por anos consecutivos a casa dimarquesa ocupou o primeiro lugar da lista The world’s 50 Best Restaurants e que depois de um “diz que não disse” de que ia fechar, anunciou que passará a funcionar em novos moldes. O motivo, segundo o chef dinamarquês René Redzepi seria que o Noma “havia se tornado insustentável financeira e emocionalmente”.
Deixando de lado o aspecto emocional, Frechon trata da questão econômica e diz que, se por um lado, no meio gastronômico houve uma consternação pela notícia, por outro ninguém mais vê com bons olhos que se explore as pessoas.
“Ao que parece o problema principal é que há leis que mudaram na Dinamarca e ele não podia mais manter seu esquema de trabalho, de não pagar os estagiários. E ele tinha mais de 80 estagiários. Não se trabalha mais dessa maneira atualmente.”
"O momento atual é outro. As pessoas vêm estagiar nos restaurantes para aprender, mas trabalham ao mesmo tempo. E todo o trabalho merece uma remuneração"
Frechon lembra de tempos atrás, quando a situação era outra no mundo: “Esse esquema funcionava quando havia os japoneses, que pagavam para trabalhar nas cozinhas, mas os tempos mudaram. O momento atual é outro. As pessoas vêm estagiar nos restaurantes para aprender, mas trabalham ao mesmo tempo. E todo o trabalho merece uma remuneração.”