Acostumada a ver suas aeronaves cumprirem diferentes roteiros diariamente em todo o mundo, a Boeing vive a incerteza sobre o seu próprio destino. Desde outubro de 2018, dois acidentes envolvendo o avião 737 MAX vitimaram 346 pessoas, em um espaço de menos de cinco meses. E mergulharam a gigante americana na maior crise de sua história.
O cenário conturbado custou o cargo do CEO Dennis Muilenburg, que comandava a Boeing desde julho de 2015. Na segunda-feira 13 de janeiro, o americano David L. Calhoun assumiu o posto, com a difícil tarefa de traçar um novo plano de voo para a empresa.
Em uma mensagem destinada aos funcionários da Boeing, o executivo de 62 anos elencou uma série de prioridades. Entre elas, uma questão que inclui diretamente o Brasil no mapa de turbulências da companhia: a aprovação de duas joint ventures com a Embraer.
O primeiro acordo envolve a compra dos negócios e serviços de aviação comercial da Embraer. A Boeing vai desembolsar US$ 4,2 bilhões para ficar com uma fatia de 80% da nova empresa. Já a segunda joint venture, batizada de Boeing Embraer Defesa, inclui a aeronave militar C-390 Millennium, desenvolvida pela fabricante brasileira, que ficará com uma participação de 51% na operação.
Os detalhes iniciais das duas propostas foram divulgados no fim de 2017. Desde os primeiros rumores, as negociações foram cercadas de questionamentos, especialmente no Brasil. Para alguns opositores da aliança, os acordos colocavam em xeque o futuro de um dos maiores símbolos da indústria local.
Alguns elementos recentes na trilha da Boeing levantaram novas dúvidas sobre essas negociações. O principal ponto passa pelas dificuldades de caixa enfrentadas pela fabricante americana, em virtude da extensão da crise.
Entre os fatores que sustentam essa visão estão a suspensão dos voos com o 737 MAX, em vigor desde março, e a paralisação na produção do modelo, anunciada em setembro. Bem como os custos relacionados a questões como os recursos destinados à manutenção de fornecedores e os acordos para compensar os prejuízos das companhias aéreas. Nessa última vertente, a empresa estimou um gasto de US$ 6,11 bilhões.
Nesta semana, a agência Bloomberg publicou uma reportagem afirmando que a Boeing estaria negociando empréstimos com um grupo de bancos, liderado pelo Citigroup. No início do mês, o jornal econômico The Wall Street Journal informou que a companhia buscava levantar até US$ 5 bilhões.
O acesso a crédito, no entanto, também pode ter seus entraves. Na segunda-feira, a agência de classificação de risco Moody’s rebaixou o rating da Boeing, ao afirmar, em relatório, que acontecimentos recentes “sugerem uma recuperação mais cara e prolongada”. Em dezembro, a Standard & Poor’s já havia seguido o mesmo caminho.
Reflexos
Procurada, a Boeing informou que “não prevê qualquer impacto no acordo com a Embraer”. A Embraer, por sua vez, disse que não iria se pronunciar. Para fontes consultadas pelo NeoFeed, a situação financeira da companhia americana não traz grandes riscos para a concretização das alianças. Elas apontam, no entanto, alguns fatores de atenção nesse processo.
“O atraso na aprovação pela União Europeia segue como uma preocupação”, afirma Scott Hamilton, especialista no mercado de aviação. Já aprovada em países como os Estados Unidos, a joint venture relacionada aos negócios de aviação comercial segue emperrada na Europa.
Em uma nova etapa do processo, marcado pelas preocupações em torno da concentração de mercado, as autoridades europeias solicitaram à Boeing mais de 1,5 milhão de páginas com informações sobre a operação.
A necessidade de solucionar os problemas relacionados ao 737 MAX acrescenta outros componentes nesse pacote. “Esses aspectos certamente vão concentrar recursos e a atenção da gestão”, afirma Richard Aboulafia, vice-presidente da consultoria americana Teal Group.
Sócio e analista de investimentos da gestora GEO Capital, Arthur Siqueira complementa: “Todos os esforços agora estão direcionados a fazer o MAX voltar a voar”, observa. “E isso pode afetar os prazos e o processos relacionados a uma eventual integração da Embraer.”
Os acordos não carregam, porém, apenas preocupações. Entre os analistas, há um consenso sobre o papel que a Embraer pode exercer na recuperação da Boeing, à medida que esses acordos sejam aprovados e colocados em prática.
“A Embraer pode ser uma tábua de salvação para a Boeing recuperar fatores que perdeu ao longo do tempo, como a capacidade de engenharia e o viés de inovação”, diz Francisco Lyra, sócio da consultoria C-Fly Aviation. “A Boeing pecou pelo excesso de confiança e uma certa arrogância, ao achar que podia estender o ciclo de vida de um produto que já não atendia às demandas tecnológicas atuais.”
“A Embraer pode ser uma tábua de salvação para a Boeing recuperar fatores que perdeu ao longo do tempo, como a capacidade de engenharia e o viés de inovação”, diz Francisco Lyra, sócio da C-Fly Aviation
Para Lyra, essa abordagem encontrou respaldo na complacência da Administração Federal de Aviação dos Estados Unidos (FAA). Em contrapartida, ressalta ele, a Embraer sempre esteve exposta a avaliações extremamente rigorosas da FAA e de outras agências reguladoras. O que forçou a empresa a se especializar em projetos que atendessem às mais elevadas exigências e certificações.
“A Embraer sempre encontrou um olhar duro nesses processos. E provou que consegue entregar produtos seguros e eficientes nos prazos prometidos”, diz Lyra. “E isso é um grande trunfo, já que agora, com o caso do 737 MAX, todas as certificações ficarão mais rígidas.”
Além de ressaltar que as capacidades da Embraer serão extremamente úteis para o futuro da Boeing, Aboulafia, da Teal Group, é mais um analista que chama a atenção para a necessidade de a companhia americana resgatar uma gestão e uma cultura mais centradas na engenharia. E menos orientadas pela obsessão por fatores como redução de custos e retorno para os acionistas.
Muitos dos aspectos apontados pelos dois analistas vieram à tona no fim da semana passada, quando uma série de e-mails trocados por funcionários da Boeing durante o desenvolvimento do MAX 737 foi divulgada por veículos como a agência Reuters e o jornal The New York Times.
Entre outros temas, as mensagens ressaltam problemas de segurança envolvendo o modelo. “Este avião é projetado por palhaços que, por sua vez, são supervisionados por macacos”, diz uma delas. “Você colocaria sua família em simulador MAX? Eu não”, destacava um funcionário, em outro texto.
As conversas também sinalizam que a redução nos custos do processo eram uma orientação. Em algumas delas, membros da equipe chegam a ironizar as considerações da Lion Air sobre a necessidade de treinamento de seus pilotos no simulador do modelo em questão. Cerca de um ano depois, veio o primeiro acidente com o 737 MAX, envolvendo justamente uma aeronave comprada pela companhia aérea da Indonésia.
Desde então, a Boeing mergulhou em uma crise que parece não ter fim. Nesta terça-feira 14, a companhia divulgou que o seu volume de entregas de aeronaves atingiu, em 2019, o índice mais baixo em mais de uma década, com 380 aeronaves. Em 2018, a empresa contabilizou 806 aviões entregues.
Ao mesmo tempo, a fabricante encerrou o ano com 246 pedidos, o número mais baixo desde 2003. Em contrapartida, a Airbus somou 863 entregas no período, o que representou um crescimento de 8% na comparação com 2018. E fechou o ano com um total de 768 pedidos de aviões.
Outros indicadores reforçam os contornos críticos para a fabricante americana. De uma avaliação de US$ 248,9 bilhões em março de 2019, a maior de sua história, a Boeing recuou para o valor de mercado atual de US$ 187 bilhões, segundo a consultoria Economatica.
Entre janeiro e setembro de 2019, o lucro líquido da Boeing caiu 95% na comparação anual, para US$ 374 milhões. Já a receita ficou em US$ 58,6 bilhões, o que representou uma queda de 19%.
Novo mercado
Diante desse cenário, a aliança com a Embraer pode trazer um respiro para a Boeing. A fabricante brasileira tem como seu carro-chefe os jatos de até 150 assentos. E permite que a Boeing acesse o segmento de aviação regional, até então inexplorado pela empresa. O mercado em questão é consideravelmente menor na comparação com o negócio principal da companhia americana, mais voltada às aeronaves de maior porte e à área de defesa.
Para efeito de comparação, das 44 mil aeronaves que a Boeing estima entregar nos próximos 20 anos, apenas 5%, ou 2,2 mil aviões, se encaixam nesse perfil. A entrada nesse mercado ganhou caráter de urgência, no entanto, quando a franco germânica Airbus ingressou no segmento, em outubro de 2017, ao comprar a divisão C-Series, da canadense Bombardier.
A briga na aviação regional adiciona um novo capítulo à histórica disputa pelo posto de maior fabricante global na aviação comercial, que sempre esteve restrita à dupla formada por Boeing e Airbus. “Nesse jogo de xadrez, a Boeing ganha força e, ao mesmo tempo, ‘tira’ a Embraer, que é um nome de peso na aviação regional, do jogo.”
Nesse segmento, outras concorrentes começam a despontar. Entre elas, a chinesa Comac, a japonesa Mitsubishi e a russa Sukhoi. “A compra pela Boeing tornou-se um processo lógico para a Embraer dentro do rearranjo desse segmento”, diz Lyra. “Sem isso, sobrariam poucas alternativas de sobrevivência para a empresa.”
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