O livro “Reminiscências de um operador da bolsa”, se não é “o clássico do século”, pode comemorar com justiça o título de clássico de um século: seus primeiros leitores o conheceram na forma de artigos publicados a partir de 1922 para o Saturday Evening Post.

Desde então, a obra atravessou os períodos de euforia e de colapso no mercado sempre recomendada por especialistas, que lhe deram alta cotação em todos esses anos. Como tudo que se vende no pregão, porém, convém cautela e clareza de objetivos ao investir seu tempo e dinheiro na leitura desse divertido livro centenário.

Sairá frustrado quem buscar nele uma orientação segura e confiável para suas aplicações na Bolsa de Valores, empolgado por avaliações como a do ex-presidente do FED Alan Greenspan, que classificou o livro como “fonte de sabedoria sobre investimentos”.

Vai se divertir, porém, o leitor atrás de boas histórias – e, vá lá, lições permanentes – tiradas da experiência de um especulador genial que começou sua carreira aos 15 anos, na chamada “Era Dourada” dos EUA, com seus “Barões Gatunos (Robber Barons)”, empreendedores notáveis nem sempre providos de escrúpulos e caráter.

O livro, escrito na primeira pessoa, é uma ficção baseada, em sua maior parte, na vida do megaespeculador Jesse Livermore (Larry Livingston, no texto), figura lendária no mercado dos EUA por suas espetaculares movimentações com ações e comodities, cuja fama chegou a obrigá-lo a contratar guarda-costas após o crash da Bolsa de Nova York, em 1929, que inúmeros – e zangadíssimos – investidores quebrados atribuíram a ele.

A fama chegou a obrigá-lo a contratar guarda-costas após o crash de 1929, que inúmeros – e zangadíssimos – investidores quebrados atribuíram a ele

Afinal, apostando na baixa, saiu, daquele desastre, com US$ 100 milhões no bolso (algo próximo a US$ 1,65 bilhão hoje, levando em conta uma inflação média de 3,06% ao ano desde aquela data).

O autor, o jornalista Edwin Lefèvre, nascido no Panamá (quando ainda não havia lá o canal, e o país era parte da Colômbia), filho de americano naturalizado, foi também um bem-sucedido investidor; os últimos capítulos ressoam ideias do próprio Lefèvre, exploradas em outros artigos da época, sobre o papel da manipulação de preços no mercado, que ele considera saudável em situações onde grandes acionistas desejam comprar ou vender grandes quantidades de papéis sem, com isso, provocar oscilações abruptas nos preços.

É fácil ver o porquê do sucesso centenário dessas “Reminiscências”, apesar de seu tom muitas vezes crítico às práticas dos operadores, não raramente descritas como um jogo repleto de traições, enganos, malandragens e pura especulação movida pelo instinto de manada.

Embora não traga cenas picantes, fofocas pessoais, nem descrições da vida de luxo do protagonista (Livermore, na vida real, chegou a ter um iate só menor que o de J.P. Morgam, um exército de empregados em suas diversas casas e uma coleção de Rolls Royces), o livro faz o leitor sonhar com uma caminhada para um destino de sucesso, em meio a grande luxo e poder nos melhores momentos, com derrotas que apenas consolidam as convicções do protagonista em seus esforços de “vencer o mercado”.

O livro faz o leitor sonhar com uma caminhada para um destino de sucesso, em meio a grande luxo e poder

Spoiler: Livermore/Livingstone conclui que ninguém “vence” o mercado, apenas aprende a aproveitar as oportunidades que ele traz; e que boa parte das jogadas especulativas acaba em fracasso. A vida de Livermore/Livingston é uma jornada – com altos e baixos - do herói obstinado, corajoso e dotado de poderes que o destacam das pessoas comuns (os “otários”).

Mas é um herói com a humildade de reconhecer que também comete erros e não se furta a compartilhar as lições aprendidas, com mensagens otimistas sobre persistência, em um tom sincero e confessional bem diferente dos clichês otimistas de autoajuda também apreciados por muita gente nos salões das finanças.

“Se um homem for ao mesmo tempo sábio e sortudo, não cometerá o mesmo erro duas vezes. Mas cometerá qualquer um dos 10 mil erros irmãos ou primos do original”, aconselha o narrador, em uma das muitas máximas que tornaram o livro famoso. Uma outra: “Os inimigos mortais do especulador são: ignorância, ganância, medo e esperança”.

O próprio Livermore diz ter ‘plena consciência” de que muitas de suas generalizações não soam como grande novidade para quem já atua na área; por isso, argumenta ele, espera impressionar os leitores com exemplos concretos, das vezes em que fez mover o mercado a ponto de se tornar uma celebridade temida, a quem os contemporâneos atribuíam movimentos marcantes na Bolsa em que ele próprio confessa não ter tido nenhuma participação.

"Os inimigos mortais do especulador são: ignorância, ganância, medo e esperança”

A história real do garoto especulador

A história real de Livermore/Livingston é de fato impressionante e começa aos 15 anos como funcionário numa “bucket shop”, espécie de casa de apostas que vicejou nos EUA do começo do século XX, onde pessoas sem dinheiro suficiente para operar nas bolsas de valores podiam comprar ou vender papéis vinculados às cotações do mercado, transmitidas por meio de fitas de telégrafo.

Como todo mito, Livermore é um modelo difícil de ser copiado, já que seu sucesso se deve em grande parte a qualidades e idiossincrasias muito pessoais – exercidas num momento pioneiro, de frequentes momentos de euforia entre investidores e baixa pressão regulatória sobre as negociações com ações e commodities.

Com memória invejável e grande habilidade matemática, o adolescente logo intui um método comparável a uma versão rústica do que, hoje, conhecemos no mercado como análise quantitativa, que usa algoritmos para identificar ciclos de tendências baixistas ou altistas.

Em pouco tempo, apelidado no mercado de “Garoto Especulador”, reuniu o suficiente para ganhar independência. Seu hábito de registrar não somente as altas e baixas de cotações, mas também os erros e acertos de seus palpites, como forma de aperfeiçoar seu método de investimento é uma das dicas apreciadas do livro.

A capacidade de driblar os truques muitas vezes desonestos dos donos dessas verdadeiras casas de apostas viciadas logo tornou o “garoto especulador” persona non grata no meio, e ele decidiu experimentar seus métodos no mercado real, onde, a princípio, teve prejuízos, até identificar as diferenças entre as operações baseadas em dados impressos com algum atraso, das “bucket shops” e o mundo real das ordens de compra e venda no pregão.
Alguns sucessos e tropeços depois, concluiu que seu hábito de acompanhar ações individuais o induzia a erros, por subestimar as forças altistas ou baixistas do mercado.

“As ações nunca são altas demais para se começar a comprar ou baixas demais para se começa a vender”, conclui Livingston/Livermore, que também conta como aprendeu a conter seus impulsos e dar tempo para que as tendências do mercado apontassem rumos previsíveis.

“Após a transação inicial, não faça uma segunda, a menos que a primeira mostre lucro. Espere e observe”

“Após a transação inicial, não faça uma segunda, a menos que a primeira mostre lucro. Espere e observe”, prega ele, em um dos muitos trechos onde expressa sua filosofia como operador, baseada na ideia de que se deve identificar o ânimo do mercado e antecipar-se a ele, comprando em momentos de alta e vendendo nas quedas, mas evitando a armadilha de tentar adivinhar o momento exato em que as cotações chegarão ao seu pico ou alcançarão o fundo.

Contexto é sempre bom

A nova edição recém-lançada no Brasil, pela Portfólio-Penguin, se ressente da falta de um esforço maior para contextualizar e explicar os exemplos e referências levantados no texto de Lefèvre. Os editores parecem ter ficado a meio caminho, sem decidir entre mirar no público familiarizado com operações do mercado ou oferecer uma leitura para leigos interessados.

Nas poucas notas explicativas, o livro se dá ao trabalho de traduzir termos já popularizados na imprensa, como “Insider”, “bull market”, “bear market”, mas deixam sem explicação jargões do mercado frequentes no relato do protagonista e fundamentais para o entendimento de suas jogadas, como “margem”, “saldo do meu volume” ou “venda a descoberto” (esta última ganha uma explicação em jargão de mercado na página 100 e, só após diversas menções no texto, é definida pelo próprio autor, mas o leitor fica sem saber a diferença entre as operações “ descoberto” realizadas nas “bucket shops” e as reais, na Bolsa).

Faria bem à edição brasileira o cuidado que teve a editora americana Wiley, na versão do livro lançada há pouco mais de dez anos, complementada por centenas de notas de John Markman que conduzem o leitor ao contexto da época, revelam nomes de empresas e personagens escondidos no texto sob pseudônimo, explicam tecnicalidades pouco conhecidas pelo leitor comum e esclarecem mudanças ocorridas nesse mercado, que tornam certas peripécias de Livermore/Livingston lembranças de um passado irreproduzível, domado por décadas de aperfeiçoamento da regulação .

Um pouco de contexto também ajudaria a explicar o sucesso de Livermore/Livingston em alguns momentos da carreira, beneficiado por ser o homem certo no lugar certo. A maneira casual como o autor se refere à euforia nas bolsas após a guerra entre EUA e Espanha e o frenesi bancário na Primeira Guerra Mundial é um chocante – e atualíssimo - exemplo de como as guerras podem ser uma benção para gente com muito dinheiro disposta a multiplicá-lo por meio de jogadas especulativas.

A maneira como o autor se refere ao frenesi bancário na Primeira Guerra Mundial é um chocante -- e atualíssimo -- exemplo de como as guerras podem ser uma benção para gente com muito dinheiro

O leitor deve ter em mente que o período coberto pelo livro, do começo do século XX ao início da década que terminaria na crise de 29, foi um momento singular, de rápidas mudanças e muitas oportunidades, como recorda o protagonista de “Reminiscências”, ao comentar que “a especulação com ações se tornou muito mais difícil para quem opera de maneira inteligente”. Ele lembra que, em 1901, eram 275 as ações listadas em Bolsa; no começo dos anos 20, período em que o narrador conta suas memórias, passavam de 900 as ações da “lista regular”.

“A capitalização era menor e as notícias que um trader deveria procurar não abrangiam um campo tão amplo”, diz Livermore/Livinsgton. “Hoje, um homem negocia tudo; quase todos os setores de atividade do mundo estão representados. Manter-se informado requer mais tempo e dá mais trabalho”, comenta. Seria um bom pretexto para uma nota que informasse ao leitor o número de empresas negociadas hoje, somente na Bolsa de Nova York e na Nasdaq: pouco maior que 5 mil.

Como insistem em lembrar os fãs dessa obra centenária, porém, há aspectos desse mundo que não mudaram com os anos. Além de alguns conselhos sobre a necessidade de buscar sempre o contexto do mercado para traçar cenários (Livermore era um leitor voraz dos jornais da época), vale para os tempos atuais o alerta do especulador protagonista contra a propensão a embarcar acriticamente em dicas e orientações externas, sejam de amigos aparentemente desinteressados, de consultores financeiros ou jornalistas especializados, todos levados, com frequência, conscientemente ou não, a seguir interesses velados.

São hilariantes alguns exemplos desse apego a informações de cocheira citados no livro.
A ironia de Lefèvre aplicada aos jornalistas especializados é cruel, como quando deplora o vício de recorrer a fontes anônimas e descreve o que considerou seu melhor momento no mercado, em que a mera circulação de boatos sobre ele, amplificados pela imprensa, lhe trouxe sucesso em uma operação de manipulação de ações.

"O público tinha como referência minha reputação no jornal como um especulador de sucesso. Eu tinha que agradecer a um ou dois repórteres de imaginação fértil”

“Não fazia ideia de que tinha tantos adeptos”, confessa. “Naquela manhã chegaram ordens de compra de todo o país para comprar milhares de ações que, três dias antes, ninguém queria a preço nenhum. E...a única coisa que o público tinha como referência era minha reputação no jornal como um especulador de sucesso, algo pelo qual eu tinha que agradecer a um ou dois repórteres de imaginação fértil”.

Um fim trágico

A década de 30, não coberta pelo livro, marca a criação da SEC, a CVM americana, e de uma série de regulamentações que tornou impossíveis muitas das peripécias descritas no livro. Não pode ser coincidência que comece aí também a decadência do protagonista.

Autor, ele próprio, de comentários sobre grandes mitos do mercado que acabaram a vida na miséria, Livermore só não teve o mesmo fim porque, como conta nas “Reminiscências”, desde o primeiro de seus três casamentos teve cuidado de montar um trust com recursos aplicados independentemente, a salvo de tentações especulativas, para ele, mulher e filho. Biógrafos de Livingston afirmam, porém, que, ao morrer, suas dívidas superavam quase duas vezes seu patrimônio.

As “Reminiscências” terminam com conselhos valiosos sobre como investidores podem ser ludibriados por corretores profissionais e alerta sobre as dificuldades de enriquecer e manter a riqueza baseando-se na especulação. “Razões concretas levam insiders a comprar; boatos ajudam-nos a vender aos que chegam depois”, avisa.

Na vida real, esses cuidados não impediram que Livermore acabasse a vida tragicamente, suicidando-se aos 63 anos com uma pistola calibre 35 no bar que frequentava, após deixar um curto bilhete definindo-se como um fracassado.

O necrológio publicado pela revista Time em dezembro de 1940 não o poupou. E serve também de aviso para quem confia cegamente em coaches e gurus, quando se trata de fazer render o próprio dinheiro: “quando, na primavera passada, colocou seu sistema no papel e reabriu seu escritório para negociar comissões por clientes, foi um sinal de que ele estava acabado. Nenhum homem que pudesse ganhar dinheiro para si mesmo jamais disse ao público como fazê-lo”.

Serviço:

"Reminiscências de um operador da bolsa"

Edwin Lefèvre

Tradução: Renato Marques

Número de páginas: 328

Preço: R$ 69,90 / e-book: 39,90