Às vésperas do anúncio do arcabouço fiscal prometido pelo governo federal, Mansueto Almeida, economista-chefe do BTG Pactual, tem muito claro as principais diretrizes que espera encontrar no pacote preparado pela equipe econômica.
“O governo precisa mostrar que vai controlar as contas públicas e a dívida não vai crescer de forma rápida, para ganhar credibilidade do mercado e abrir espaço para o BC começar a cortar juros”, afirma Almeida, em entrevista ao NeoFeed.
O economista-chefe do BTG Pactual também adverte para medidas que seriam, em sua visão, desastrosas, como as que atrelem o crescimento de gasto ao da receita, a adoção de mecanismos adicionais de indexação e a inclusão de novas despesas obrigatórias.
A experiência adquirida como pesquisador do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), com passagens por vários órgãos públicos, o levou a ser considerado um dos maiores especialistas em contas públicas do país. Foi nessa condição que atuou como secretário do Tesouro Nacional, entre 2018 e 2020, antes de ingressar no BTG Pactual.
Didático e com memória prodigiosa para citar números, o economista também aborda o dilema sobre corte de juros surgido com a crise bancária nos Estados Unidos. “Nenhum país vai abrir mão de reduzir a inflação, mas é preciso ver se essa crise vai causar uma grande restrição de crédito”, diz.
Almeida admite que os juros no Brasil estão muito altos, mas pondera. “A expectativa de inflação para os próximos três anos se afastou muito da meta, o que dificulta o corte de juros”.
Na entrevista que você lê a seguir, Almeida ainda dá uma cutucada no atual governo, ao afirmar que o Estado perdeu para o investimento privado o posto de maior indutor do crescimento do país. “Não precisamos do BNDES tão forte como era anos atrás.”
Confira os principais trechos:
O presidente Lula adotou um comportamento diferente dos mandatos anteriores, quando se comprometeu a respeitar o equilíbrio fiscal. O presidente mudou?
Apesar dos sinais dúbios do governo, falando em gastar mais, o que existe de concreto é um ministro da Fazenda, nomeado pelo presidente Lula, que tem mostrado um enorme interesse em fazer um ajuste fiscal. O orçamento desse ano foi aprovado com déficit primário de R$ 230 bilhões. O ministro Haddad, desde o início, se comprometeu a fechar o ano com déficit de R$ 100 bilhões. Quando converso com vários agentes do mercado financeiro, todos esperam algo próximo desse número.
A equipe econômica está no caminho certo?
O ministro Haddad antecipou para os próximos dias o pacote fiscal previsto para agosto. O objetivo é definir, no início de abril, qual será a meta de resultado primário para o próximo ano. Haddad sabe que precisa ter um resultado primário para o próximo ano melhor que o mercado estima. O ajuste fiscal precisa mostrar que o governo vai controlar as contas públicas e a dívida não vai crescer de forma rápida. Se der esse sinal, voltaremos ao cenário de dezembro do mercado.
"O ajuste fiscal precisa mostrar que o governo vai controlar as contas públicas e a dívida não vai crescer de forma rápida"
O que o mercado esperava em dezembro?
A expectativa era de que, a partir do terceiro trimestre, o BC ia começar a cortar juros. Hoje mudou: o mercado espera um pequeno corte de juros apenas em outubro, para fechar o ano com taxa de 12,75%. Isso já vai atrapalhar o cenário de 2024, daí a necessidade do ajuste fiscal. O ministro Haddad vem sinalizando que, no ajuste fiscal, não está prevista uma meta de dívida, mas a indicação de uma trajetória de sustentabilidade e, no médio prazo, de queda.
Qual os riscos embutidos nessa estratégia?
Ninguém espera do governo um plano econômico que a dívida pare de crescer no primeiro ano. O que o mercado gostaria é de uma sinalização de que a dívida não vai crescer tanto, ou seja, com um déficit de 2024 menor – próximo de zero, como sugeriu o Haddad. Se o governo anunciar um plano fiscal nessa linha, consegue ganhar credibilidade do mercado e abre espaço para o BC começar a cortar juros no segundo semestre. Foi assim no teto de gastos. Quando foi aprovado, em 2016, o déficit primário era de 2,5% do PIB. No ano seguinte, foi de 1,9% do PIB e foi caindo até chegar a 1,5% do PIB. O mero fato de existir uma regra e mostrar que a cada ano o déficit primário seria menor foi suficiente para fazer a curva de juros cair.
Quais medidas que, na sua opinião, não deveriam ser incluídas de jeito nenhum nesse arcabouço?
Qualquer medida que ligue crescimento de gasto com crescimento de receita é ruim. Porque pode ocorrer crescimento de receita restrita a um ano, que não é recorrente, e como aumenta o gasto junto, fica difícil reduzir depois. Mecanismos adicionais de indexação também não servem, pois o governo já tem 60% do orçamento indexado. Outra armadilha é propor medida nova para despesa obrigatória porque 94% do gasto do orçamento já é definido por regras. Enfim, seria preocupante ter mais vinculação, mais indexação e novas despesas obrigatórias.
Já que precisa aumentar a receita, por que o governo rejeita os programas de privatizações, PPPs e concessões iniciados nas gestões anteriores e insiste em reviver o BNDES gastador?
Na verdade, não precisamos do BNDES tão forte como o país teve lá atrás. O importante é que o mercado de capitais desenvolva. Desde que o Brasil saiu da crise de 2025-2016, o investimento público caiu. Em 2017, a taxa de investimento do Brasil estava em 15% do PIB. No ano passado, fechou em 18,8% do PIB. Portanto, o grande fator que puxou a taxa de crescimento do Brasil nos últimos anos foi o investimento privado. E ainda tivemos nesse período um crescimento muito forte do mercado de capitais.
Qual a relação entre o crescimento do mercado de capitais e da taxa de investimento?
Basta olhar o total de captação nova de diversos instrumentos de mercados de capitais: IPOs, follow ons, debêntures incentivadas, formação de fundos imobiliários, emissão de LCIs e LCAs. Tudo isso somava, em 2016, R$ 120 bilhões. Em 2021, já eram R$ 610 bilhões. Saímos de um período em que o mercado de capitais era muito pequeno para outro de forte crescimento, o que favoreceu o financiamento de todas as empresas e obras de infraestrutura.
"A reforma tributária é um daqueles temas que todo mundo é a favor até que se apresentem as propostas"
Apesar do consenso em torno da reforma tributária, já começam a surgir reações setoriais, como do agronegócio, contra perda de benefícios fiscais. A aprovação está sob ameaça?
A reforma tributária é um daqueles temas que todo mundo é a favor até que se apresentem as propostas. Temos duas propostas diferentes. A primeira é a do IVA, de imposto indireto. A segunda proposta é a de imposto direto, que pelo cronograma deve ser apresentada no segundo semestre. O processo estabelecido na Câmara para aprovação do IVA é correto, com bom fórum de discussão. Devem chegar ao fim de maio com alguma proposta que pode ou não ser levado à votação, mas tem um trabalho político a ser feito. O cronograma do governo é pela aprovação até o meio do ano. Se aprovar até dezembro, será um enorme sucesso.
O governo Lula tem a seu favor uma agenda ambiental alinhada com o Primeiro Mundo e a possibilidade de avançar na transição energética. Como podemos conciliar essa pauta verde com crescimento?
Ao contrário de muitos países desenvolvidos, a nossa matriz energética é uma das mais ricas do mundo. Do ponto de vista de segurança enérgica, teremos nos próximos dez anos crescimento de energia fóssil, como petróleo – por causa do pré-sal, com a curva de investimento crescendo a partir de 2026 –, além de energia solar e eólica, com custos caindo nos últimos anos. Os outros países estão mais preocupados em definir política porque a matriz deles não é tão rica quanto a nossa. E todos estão de olho em investimentos no Brasil. Quando ficar mais clara a política do governo, o processo deve avançar.
A crise bancária nos EUA ainda não foi controlada. Existe risco dessa crise escalar para o sistema bancário global?
Ninguém sabe se crise vai ficar nos bancos pequenos ou até pegar um banco grande, seja nos Estados Unidos ou na Europa. Mas o fato é que mudou o cenário de juros. Até o início da crise, a expectativa era de que a taxa de juros americana passasse de 5% ou até 5,5%. Agora, o mercado está precificando cortes elevados de juros já este ano. Se a crise ficar localizada, pode até eventualmente beneficiar o Brasil.
Como ajudaria o Brasil?
Ainda estamos com juros tão altos, que um cenário de juros internacionais mais baixos evitaria um elemento de incerteza – essa subida de juros muito fortes lá fora, que estava sendo esperada por causa da inflação nos EUA e na Europa. Mas ainda não dá para saber se a crise vai mudar a trajetória da política monetária americana. O recente aumento dos juros de 0,5 ponto percentual pelo Banco Central Europeu foi uma surpresa. Mas acredito que o Federal Reserve (Fed, o banco central dos EUA) eleve os juros em 0,25 ponto percentual e, depois, algo muito gradual.
Não é arriscado o Fed abrir um precedente no combate à inflação por causa da crise bancária?
Nenhum país vai abrir mão de reduzir a inflação, mas é preciso ver se a crise vai causar uma restrição muito grande de crédito. O debate é parecido com o que temos hoje no Brasil: quando as condições de crédito pioram muito rápido, os efeitos na economia são os mesmos do que com juros altos? Mas se a crise for passageira e não tivermos um cenário de restrição de crédito, os BCs vão retomar o aumento de juros.
Uma eventual queda de juros do Fed pode aumentar a pressão para o BC daqui também fazer o mesmo?
Mesmo que o Fed aumente os juros, a pressão sobre o BC vai continuar. Em todos esses países, EUA e na Europa, a taxa de juros é menor do que a inflação esperada para o ano - estamos falando de juro real negativo ou próximo de zero. No Brasil, a expectativa é de juros reais de quase 8%.
"Como a função do BC é trazer a inflação para a meta, fica difícil adotar a narrativa de cortar juros"
Os juros aqui estão altos demais?
Vemos não só o governo como muitos gestores reclamando que os juros estão exagerados. O BC está num ambiente desafiador poque a expectativa de inflação para os próximos três anos se afastou muito da meta, que é de 3%. O relatório Focus prevê um cenário de inflação de 4% entre 2024 e 2026. Essa desancoragem de expectativa vem ocorrendo desde o início do ano, a cada semana, e preocupa. Como a função do BC é trazer a inflação para a meta, fica difícil adotar a narrativa de cortar juros.
Por que a inflação não cede diante de uma taxa de juros tão elevada?
Porque nossa economia ainda é muito indexada. O preço dos aluguéis, indexado pelo IGPM, subiu muito nos últimos dois anos. Temos 60% do orçamento do governo que é indexado - e a inflação alta leva a um aumento de gasto maior. Além disso, nossa economia ainda tem uma memória de inflação: bastam dois ou três anos com índices elevados para começar a se preocupar com os riscos, acionando os mecanismos de indexação, o que leva essa inflação a se tornar inercial. Por isso que o Brasil trabalha com juro muito mais alto para derrubar a inflação.