Hora H, do vamos ver, da prova de fogo ou da onça beber água. Qualquer que seja a sua expressão preferida, saiba que ela se aplica bem ao atual momento da sustentabilidade nas empresas.

Tanto a pandemia quanto o pós-coronavírus apresentam duas circunstâncias cruciais, absolutamente decisivas, para fazer avançar ou não os temas de ESG na gestão, estratégia, governança e cultura das organizações.

Antes de explicar minha opinião, cabe aqui uma contextualização. O interesse pelos aspectos ESG (sigla em inglês para os temas ambientais, sociais e de governança) no mercado financeiro vem crescendo desde o final dos anos 2000, com especial ênfase nos últimos três anos.

Segundo o The Global Sustainable Investment Alliance, o total de investimentos alocados em ESG, em 2019, era de US$ 30, 7 trilhões, 34% a mais do que o valor registrado em 2016.

Isso significa, na prática, mais investidores realocando os seus portfólios para fundos alinhados com princípios que endereçam questões não financeiras, antes menos consideradas, como o uso adequado de recursos naturais escassos, o risco das mudanças climáticas, o tratamento digno a trabalhadores, o cuidado para com as comunidades, códigos de conduta e sistemas de compliance rigorosos.

Antes da pandemia, a tendência era de expansão neste movimento. A curva de alta vinha sendo puxada, em grande medida, pela ascensão da ideia do propósito antes do lucro, ou de um novo capitalismo, defendida em cartas públicas como a de Larry Fink, da BlackRock, e declarações contundentes de importantes líderes no Fórum Econômico Mundial de Davos.

Ser sustentável agora tende a ser o novo normal competitivo. ESG começa a ser visto como sinônimo de investimento bom, inteligente e cuidadoso. Mudaram as visões de ativo, passivo e retorno.

Ser sustentável agora tende a ser o novo normal competitivo

Houve uma revalorização dos componentes de riscos e criação de valor. Integrar questões ambientais, sociais e de governança à análise de ativos, reduz incertezas e incrementa o retorno sobre o capital.

Mas por que, então, se falar em “hora do vamos ver” para a sustentabilidade? Na verdade, vejo duas “horas H.” A primeira, no meio da crise do vírus, será a prova de fogo para distinguir, na prática, quem é, de fato, sustentável, de quem apenas diz ser sustentável.

Trata-se de uma inversão daquele provérbio sobre a honestidade da mulher de Cesar: não basta parecer, é preciso ser. Nas crises, a verdade, insiste em buscar a luz.

Esqueça, portanto, os relatórios de sustentabilidade, deixe de lado os ratings e rankings. É hora da “prova dos nove.” Fosse eu investidor, estaria agora de olhos atentos para ver, no calor do jogo, quão coerentes estão sendo algumas companhias com os seus compromissos de sustentabilidade, isto é, quão responsivas têm sido nos desafios ligados ao ESG.

Especialmente em relação ao “S” da sigla, a inicial relacionada com as pessoas, uma dimensão que ganha maior importância comparativa em situações como a que estamos vivendo com o coronavírus.

Avalie, por exemplo, como as companhias que, nos relatórios, afirmam dispor de políticas sólidas de bem estar para os colaboradores, de suprimento responsável, de apoio a clientes e parceiros de negócio e de relacionamento próximo com comunidades estão agindo para minimizar os efeitos da crise sobre esses públicos de interesse.

Desconfie das que não liberaram os colaboradores de escritório para home office, não asseguraram as melhores condições de saúde e segurança aos que não puderam aderir à quarentena; ou, pior, usaram o discurso da demissão para pressionar autoridades públicas.

Fique atento às grandes empresas que abandonaram à própria sorte os milhares de pequenos negócios que constituem a sua rede de fornecimento.

Observe com rigor as companhias de serviço que, podendo flexibilizar regras de pagamento e endividamento, preferiram ignorar a situação difícil dos seus clientes e famílias.

Duvide das que optaram pela omissão, ou por fazer o mínimo necessário para a “galera”, no lugar de reconverter sua produção para fabricar produtos e equipamentos necessários no combate ao vírus, ceder expertise, mobilizar sua cadeia de valor e fazer doações para diminuir a dor e a insegurança da sociedade.

Empresas deste tipo podem até enganar um ou outro investidor com relatórios pomposos. Mas não conseguirão convencer a maioria deles, nem mesmo os seus stakeholders, na medida em que lhes faltam o substrato de todo bom relatório: fatos, evidências, verdade, legitimidade, ou, como diria minha avó, vergonha na cara.

Fique atento às grandes empresas que abandonaram à própria sorte os milhares de pequenos negócios que constituem a sua rede de fornecimento

A segunda “hora H” pode ocorrer ao fim da pandemia. E aqui, vale dizer, não estou sozinho nessa minha convicção. Na semana passada, participei de uma live do Laboratório de Inovação Financeira, da ABDE, sobre o impacto do coronavírus no ESG, com a participação, entre outros, do ex-ministro da Fazenda Joaquim Levy.

A opinião de Levy reflete, em parte, minhas atuais reflexões. Já que governos e bancos terão de abrir os cofres para recuperar a combalida economia pós-coronavírus, eles podem escolher entre voltar ao que era antes da explosão do vírus ou condicionar o investimento a novos padrões que encaminhem, de modo mais rápido, a solução para alguns dilemas socioambientais do mundo atual.

“Não se pode retornar ao velho normal, até porque a economia global já vinha torta. Seria desperdiçar a oportunidade de fazer melhor e de criar uma agenda positiva, por exemplo, para as mudanças climáticas que, assim como o coronavírus, colocam em risco toda a sociedade global”, disse Levy. Concordo com ele.

Em defesa de sua ideia, ele lembra que diferentes setores, como o de companhias aéreas, terão de recorrer a empréstimos ou incentivos fiscais para sobreviver à tormenta.

Uma boa providência seria cobrar, como contrapartida, que essas empresas acelerassem suas pesquisas e testes para biocombustível -- algo semelhante ao que fez Obama nos EUA, em 2009, quando, em troca do apoio do governo, obrigou as montadoras a assinarem um bem-sucedido acordo para redução de emissões de CO2.

Em tese, a mesma medida pode ser aplicada, com regras claras e transparentes, a outros setores da economia para estimular maior investimento em energias renováveis, preservação da floresta em pé, economia circular, segurança alimentar, teletrabalho, geração de trabalho e renda, regeneração de ambientes degradados, saúde, segurança e bem-estar de pessoas e comunidades. Sim, é possível. Exige vontade política.

Há algumas linhas, escrevi que a segunda “hora do vamos ver” pode ocorrer ao final da coronacrise. Há quem entenda que não. E que o mais provável seja, como em crises anteriores, quando o foco recai sobre a sobrevivência, uma concentração de esforços na dimensão econômico-financeira. Penso diferente.

Ao contrário de outros tempos, temos hoje uma razoável massa crítica nas empresas, um ambiente mais receptivo no mercado financeiro e, ainda por cima, a experiência inédita de enfrentamento de um vírus global que nos colocou a todos na mesma situação de vulnerabilidade.

Tudo isso pode, sim, fazer avançar o ESG nas organizações. Há mais gente hoje, do que em tempos anteriores, achando que as empresas podem ser a solução e não parte do problema que aflige a humanidade. Que o lucro mais legítimo será justamente aquele que vier como resposta para o melhor futuro da sociedade e o meio ambiente. E você, o que acha?

Ricardo Voltolini é CEO da consultoria Ideia Sustentável, consultor master, escritor, palestrante e conselheiro de empresas. Criador da Plataforma Liderança com Valores, escreveu dez livros, entre os quais “Conversas com Líderes Sustentáveis” (SENACSP/2011). É professor da Fundação Dom Cabral e do ISAE-FGV.

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