Quando o CEO global da Philips, Frans van Houten, assumiu a liderança da empresa, em 2011, e logo em seguida comandou a venda da operação de TV da empresa, em 2012, muitos acharam uma loucura. Em 2013, ao se desfazer da unidade de áudio e vídeo, a ação foi vista como uma insanidade. Um ato que se repetiu, em 2016, quando a companhia deixou a divisão de iluminação.

Em janeiro deste ano, mais um choque. Houten anunciou que vai vender a divisão de domestic apliances, que inclui os equipamentos Walita como ferro de passar, aspirador de pó, air fryer, entre outros produtos. Trata-se de uma área que gerou faturamento de 2,3 bilhões de euros no ano passado. O processo deve ser encerrado em 2021, só que desta vez ninguém tem colocado sua decisão em dúvida.

Hoje, a saúde já representa dois terços dos 19,4 bilhões de euros faturados em 2019 pela Philips, que lucrou 1,17 bilhão no período. E se tornou o foco número um, dois e três da companhia. “Nos últimos 20 anos, vimos que ser um conglomerado com muitas áreas de foco não funciona. Foco necessita prioridade e decidimos priorizar saúde e bem estar”, diz Fábia Tetteroo-Bueno, CEO da Philips na América Latina, ao NeoFeed.

E a empresa, que fabrica equipamentos como aparelhos de ressonância magnética, tomógrafos, mamógrafos e equipamentos de raio x, se prepara para dar ainda mais foco em duas áreas que estão ganhando cada vez mais corpo dentro do setor: o chamado home care e a gestão de dados.

“A parte de saúde em casa vai crescer muito no Brasil, principalmente com o envelhecimento populacional”, diz Tetteroo-Bueno. Por conta disso, a Philips tem estreitado relacionamento com empresas do setor e dedicado boa parte de sua energia a vender produtos voltados a combater problemas do sono, que hoje atinge 60% da população na América Latina.

A outra área prioritária é a de softwares e dados para ajudar redes de seguro, hospitais e clínicas a melhor recomendar tratamentos primários e, assim, evitar desperdícios no setor de saúde. “Muita gente vai no pronto-atendimento do hospital sem precisar. Isso é caríssimo para o sistema”, diz a executiva. “Nosso papel é criar ferramentas e treinar os funcionários dos hospitais para que eles saibam ler esses dados e atuar prevenindo.”

Nesse nicho de mercado, a Philips conta com uma poderosa ferramenta. Trata-se do software de gestão Tasy, desenvolvido na unidade de Blumenau (SC). Ali, trabalham mais de 900 pessoas e o negócio tem crescido a um ritmo frenético, a ponto de a empresa estar com 150 vagas em aberto, a maior parte delas para desenvolvedores.

Fabia Tetteroo-Bueno, CEO da Philips para a América Latina, comanda a operação na região baseada no Panamá

O software brasileiro, hoje usado em 14 países, reúne informações de 1,5 mil hospitais e clínicas de saúde – um volume de informações que pode ajudar as instituições na saúde preventiva. São hospitais do porte de Sírio Libanês, Beneficência Portuguesa, A.C. Camargo, entre outros. Mas a companhia também quer plugar startups nessa nuvem do Tasy. “Estamos trabalhando com startups para levar o atendimento para fora dos hospitais”, diz Tetteroo-Bueno.

Hoje autodenominada uma healthtech, a empresa, que destinou 1,8 bilhão de euros no ano passado para pesquisa e desenvolvimento, é um dos maiores casos de transformação. Com 128 anos de vida, a companhia não teve medo de mexer em negócios que traziam receitas bilionárias para mudar completamente o seu foco ou, como dizem as startups, pivotar.

O dinheiro das vendas foi usado, em grande parte, para fazer aquisições na área de saúde. Desde 2015, a companhia comprou 11 empresas. Companhias como Volcano, de terapia guiada por imagem; Wellcentive, de gestão da saúde da população; RepirTech, de cuidados para o sono e respiração; Remote Diagnostic Technologies, de cuidados terapêuticos, são algumas das empresas que foram absorvidas pela gigante holandesa.

Para ajudar a mapear o que há de mais moderno no setor, saber quais são as healthtechs que estão em alta, a Philips conta com time em Boston, baseado no Massachusetts Institute of Technology (MIT). “Eles buscam startups para investirmos ou para fecharmos parcerias”, diz Tetteroo-Bueno.

A unidade de Blumenau (SC) onde estão os desenvolvedores do Tasy

Hoje, ao olhar o movimento feito pela companhia e para onde caminha o setor, as ações parecem óbvias. Mas as transformações começaram bem antes de o assunto de saúde e tecnologia de dados se cruzarem e virarem moda. “O nosso CEO conseguiu enxergar dez anos à frente”, diz Patricia Frossard, CEO da Philips no Brasil, ao NeoFeed.

Há, entretanto, muitos desafios até que a medicina mude. “Muitas das tecnologias estão prontas. O desafio é que os profissionais não estão prontos para usar”, diz Cezar Taurion, presidente do Instituto de Inteligência Artificial Aplicada e autor da coluna Mente Programada, no NeoFeed. “Os médicos, a academia e os sistemas de saúde ainda não estão prontos para isso”, diz ele.

De acordo com o especialista, o modo como a medicina é ensinada tem de mudar. “Hoje, a medicina é focada em doença e ela deveria ser focada em saúde, na prevenção. E os dados podem ajudar nisso”, diz ele. Atualmente, afirma Taurion, existem tecnologias que podem ver se uma pessoa terá um ataque cardíaco só por micromovimentos da face. Pelo smartwatch, é possível saber os batimentos cardíacos, o nível de oxigenação no sangue, entre outras informações. Tudo pode ser enviado em tempo real para os médicos.

Nos Estados Unidos, o Food and Drug Administration (FDA), o órgão que regulamenta o setor de saúde, já conta com um braço para analisar algoritmos de inteligência artificial que são aplicados na medicina. “Esses algoritmos têm de ser validados porque influenciarão na prescrição médica”, diz Taurion. “Aqui no Brasil ainda estamos antes do ponto de inflexão. Vai mudar muita coisa”, diz Taurion.

Os atores do mercado também mudarão. Não existem mais fronteiras que delimitam os players. Quem um dia imaginou que Walmart pudesse contar com clínicas médicas em suas lojas? Que a Amazon, que iniciou vendendo livros, entraria no segmento de farmácias? Que a Apple criasse um equipamento que medisse até a oxigenação sanguínea?

“Mas é mais fácil para uma Philips, que já tem presença na saúde, fazer esse movimento do que para empresas de tecnologia entrarem no setor”, diz Taurion. E continua. “A medicina vai mudar completamente e o cerne disso será a inteligência artificial alimentada pelos dados.”

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