A crise do novo coronavírus "esquentou" a rivalidade entre as duas maiores potências do mundo. China e Estados Unidos, que já vinham se desentendendo por outros motivos, agora disputam também o protagonismo mundial.
Em meio a maior pandemia do século, a liderança global dos americanos tem sido questionada. Ian Bremmer, cientista político e presidente da consultoria Eurasia Group, chegou a abordar essa nova desordem mundial. Ele até criou o termo "G-Zero", em oposição ao "G-20", para sinalizar a falta de um controle internacional. Bremmer reconhece, contudo, que a China se movimenta para tomar a dianteira.
Uma pesquisa conduzida pela Fundação Körbe, organização alemã sem fins lucrativos, comprova o avanço dessa visão. Cerca de 76% dos alemães entrevistados afirmaram que, dadas as respostas internacionais para a crise da Covid-19, sua percepção dos Estados Unidos foi deteriorada. Apenas 36% disseram o mesmo da China, país que foi o primeiro epicentro da doença.
Na Inglaterra, a YouGov também quis avaliar o "termômetro" local e 35% dos britânicos declararam que a Europa deveria priorizar o estreitamento dos laços com a China, contra 13% que defendem relações mais próximas com os Estados Unidos.
Esse aparente "encolhimento" do protagonismo americano está diretamente ligado às polêmicas envolvendo o país liderado por Donald Trump. No ápice da maior pandemia do século, os Estados Unidos foram acusados de "roubar", desviar ou reter equipamentos médicos destinados a outras nações, inclusive o Brasil.
No início de abril, uma carga com 600 respiradores artificiais provenientes da China, que seria distribuídos na Bahia e Ceará, ficou retida no aeroporto de Miami sem explicações. A compra teria o valor de R$ 42 milhões, mas foi unilateralmente cancelada pela companhia chinesa, produtora dos equipamentos. Sem apresentar uma justificativa, disse apenas que a mercadoria teria outro destino.
Embora Washington negue qualquer intervenção, a hipótese mais aceita é que os americanos tenham oferecido um valor maior para a carga, que ficou no próprio país. Outra notícia que colocou a administração em maus lençóis foi a de que os Estados Unidos teria oferecido bilhões de dólares a pesquisadores alemães para trabalhar em uma vacina com direitos exclusivos, a ser usada apenas pelos americanos.
Paralelo a isso, causou indignação a declaração do CEO da farmacêutica francesa Sanofi, Paul Hudson, em que dizia que os americanos poderiam ter prioridade no recebimento da vacina, já que o país fez investimentos pesados em seu desenvolvimento. Imediatamente, o governo francês se posicionou como sendo inaceitável a postura da farmacêutica.
São manchetes deste teor que comprovam uma pesquisa feita pelo instituto Reputation Squad, da França, que indica que apenas 2% dos franceses confiariam a Trump a liderança mundial
Relações inflamadas antes do vírus
Desde 2018, primeiro ano do mandato de Donald Trump, que foi eleito com um discurso protecionista de colocar a "América em primeiro lugar", China e Estados Unidos travam uma guerra comercial.
As novas cobranças começaram no lado americano, que acusava o país asiático de práticas injustas de comércio, como a desvalorização intencional da própria moeda e a posse indevida de propriedade intelectual.
Segundo Washington, uma campanha financiada pelo governo chinês conduziu uma série de ataques virtuais a empresas americanas que estavam crescendo e se sofisticando, a fim de explorar seus dados e estratégias.
O professor americano de finanças Michael Pettis, que atua na Universidade de Pequim, há tempos acompanha de perto essa guerra comercial entre os países, e encontra erros graves no traquejo americano.
"Acredito que os Estados Unidos estão certo de exigir certos ajustes, porque alguns países, como a China, desvalorizam suas moedas para serem mais competitivos. Isso causa um desequilíbrio natural, mas o problema é que a Casa Branca quer resolver a situação com tarifas", disse Pettis ao NeoFeed.
Até agora, os Estados Unidos sobretaxaram US$ 550 bilhões de bens chineses e, como resposta, a China cobrou US$ 185 bilhões de produtos americanos. Para Pettis, contudo, a raiz desse desequilíbrio está no fluxo de capital e não de exportações. O "remédio" proposto pela administração Trump, na sua visão, seria ineficiente e ineficaz.
A conexão da discórdia
Outro ponto de atrito dos países é o 5G, a quinta geração da internet móvel. Mais rápida e estável, essa tecnologia é a principal bandeira da Huawei, empresa chinesa que é a maior fornecedora de equipamentos para redes e telecomunicações do mundo.
O governo americano tem feito pressão ao redor do mundo que os países não adotem a tecnologia da empresa chinesa, alegando que, ao fornecer seus equipamentos aos países, a China teria acesso à documentos e informações sensíveis no que diz respeito à infraestrutura, segurança, política e economia mundial.
Em fevereiro deste ano, autoridades do administração Trump chegaram a chamar a Huawei de máfia e aconselharam publicamente a Inglaterra a desistir de um eventual contrato com a empresa. Apesar dos "avisos", os britânicos deram sequência às negociações – assim como fizeram outros países europeus, mostrando que os Estados Unidos estão, de fato, perdendo a influência que já teve junto à esses países.
Crise é oportunidade
Enquanto os EUA se empenham em tentar responsabilizar a China pela pandemia do novo coronavírus – Trump, inclusive, queria a alcunha "vírus chinês" –, o país liderado por Xi Jinping tem colaborado com os esforços globais.
O professor Pettis, da Universidade de Pequim, inclusive lamenta que os Estados Unidos estejam perdendo essa oportunidade de mostrar sua liderança.
"Quando você pretende fazer mudanças estruturais de escala global, a primeira coisa que deve fazer é conversar com seus aliados e fazer com que eles se sintam parte do processo, mas Trump tem apenas irritado os nossos aliados", afirmou.
Pettis, por sua vez, acredita que, nesse sentido, Pequim tem adotado uma postura de mais abertura. E, por isso, esteja se posicionando melhor no controle desta crise. Apesar da desenvoltura chinesa, Pettis duvida que o posto de "líder mundial" esteja ameaçado.
Mas o cientista político Daniel Yang, professor da Universidade de Chicago, acredita que "não há dúvidas de que a China está desempenhando um papel global maior, porque tem destinado recursos financeiros e materiais para que outros países possam acelerar o controle dessa pandemia".
De acordo com o docente, "essa crise do novo coronavírus deve mudar a geopolítica mundial, mas ainda é cedo para emitir qualquer previsão".
Quanto às ameaças feitas no começo do mês pelo presidente Donald Trump, de cortar relações com a China, Yang acredita que, mais uma vez, o presidente americano esteja falando da boca para fora.
"É comum que ele fale demais em algumas situações, sobretudo em entrevistas. Acredito que existe um desejo genuíno por parte dos Estados Unidos de minimizar sua dependência da China, mas não acho possível que o relacionamento entre esses dois países seja extinto", diz Yang ao NeoFeed.
O economista William Yu, professor da Universidade da Califórnia Los Angeles (UCLA), é mais pessimista. "Acho possível que aconteça algum rompimento, sobretudo agora que os países estão todos em uma recessão sem precedentes. Quando o mundo enfrenta uma crise, fica mais fácil cortar relações importantes, porque as economias já estão baixas", disse Yu ao NeoFeed.
Apesar de reconhecer que o relacionamento da China com a América Latina e Europa esteja indo para um novo e melhor patamar (com exceção do Brasil, que constantemente cria algum atrito com o país), Yang insiste que "a bola está com os Estados Unidos".
Para ele, os americanos devem pressionar para mudar a cadeia logística, levando algumas fábricas da China para países como México, Portugal, Tailândia, entre outros.
"Obviamente, a China antevê essa movimentação e eu acredito que o país esteja se preparando para uma turbulência nesse sentido, mas não estou certo da resiliência chinesa; não sei por quanto tempo aguentariam essa ofensiva dos Estados Unidos", afirmou.