A recessão ronda a economia global, mas cenários diferentes autorizam doses também diferentes de aperto monetário no combate à inflação e alguns países podem escapar deste panorama mais sombrio – os Estados Unidos entre eles. Mas o Brasil vai desacelerar.

Essa é a visão de Cassiana Fernandez, economista-chefe para Brasil do J.P. Morgan. Após um crescimento estimado em 1,8% para este ano, a economia pode sofrer retração de 0,2% em 2023, quando fatores que impulsionaram a expansão em 2022 – preços fortes de commodities, aumento da arrecadação e estímulos fiscais – estarão mais enfraquecidos.

Em entrevista ao NeoFeed, ela pondera que as eleições ganham relevância porque a sinalização dos candidatos faz diferença para as perspectivas econômicas e alerta para a falta de visibilidade, sobretudo, quando à política fiscal para os próximos quatro anos.

“Falta de visibilidade e de previsibilidade afeta a confiança e, por consequência, a intenção de investimento privado”, afirma Fernandez. Para a economista, enquanto persiste a dúvida sobre como será feito o ajuste fiscal no próximo governo – e como será tratado o teto de gastos independentemente de quem for eleito em outubro – o investimento fica retraído.

Fernandez lembra ainda que os investidores não desconhecem que o ajuste fiscal ocorre com corte de despesas ou maior eficiência no gasto; crescimento mais forte e reformas que elevem a produtividade com efeito sobre a arrecadação; ou aumento de carga tributária.

“Se o ajuste não ocorrer por nenhuma dessas alternativas, acaba ocorrendo da pior forma, que é pela inflação”, diz a economista para quem o cenário externo segue em busca de equilíbrio em meio à mobilização dos bancos centrais.

Para o J.P. Morgan, a economia europeia poderá entrar em recessão no fim deste ano. Os Estados Unidos podem se livrar dela porque dispõem de indicadores mais resilientes, como revelam dados do mercado de trabalho e os balanços das empresas.

O Brasil está entre os países que, até por uma questão de credibilidade, por força de choques de oferta e até pela coordenação da política econômica, acaba tendo que fazer ajustes mais agressivos. “Nesse caso, a recessão pode ocorrer, inclusive, de maneira mais pronunciada. Hoje, esse é o nosso cenário base para o Brasil.”

Acompanhe os principais trechos da entrevista ao NeoFeed:

Qual cenário internacional o J.P. Morgan vê à frente?
Nos deparamos com um cenário bastante desafiador à medida que importantes países e blocos se encontram em situações diferentes. Alguns choques foram comuns, mas mesmo a maneira como cada economia reage difere. Entre os cenários possíveis, destacamos uma recessão já no segundo semestre deste ano induzida por um choque de oferta. Se conseguirmos evitar essa recessão, a dinâmica de inflação deve exigir uma continuação do aumento de taxas de juros. E daí há dois desdobramentos possíveis: uma recessão global pelo lado da demanda, induzida pelos bancos centrais, no ano que vem; ou um pouso suave ao longo de 2023, uma desinflação gradual, sem recessão.

É possível detalhar essas situações?
O primeiro caso é de uma recessão pelo lado da oferta, derivada de um grande choque de preços. Um bom exemplo seria o aumento do preço de commodities associado à guerra ou a própria Covid. Nesse caso, há um aumento muito rápido da inflação e o banco central pode ser até menos agressivo na gestão da política monetária porque a demanda já está reprimida pela queda de renda disponível. Esse risco é importante para a economia global, mas é muito maior para a Europa, que poderá entrar em recessão no fim deste ano.

E quanto ao segundo possível desdobramento?
A segunda situação refere-se a países que também sofreram um choque de oferta, mas conseguem evitar a recessão. Sinais de resiliência da demanda fortalecem essa hipótese, e podem ser notados nos dados mais fortes do mercado de trabalho ou no balanço das empresas, que estão mais saudáveis do que em outros momentos de crise. Pensando no caso norte-americano, achamos que esse seja o cenário base, um equilíbrio fino, onde o Federal Reserve (Fed) eleva os juros e promove uma desinflação gradual. No entanto, não podemos ignorar um cenário que parece se aplicar a diversos países emergentes. Este terceiro cenário se aplica a países que, até por uma questão de credibilidade, por força de choques de oferta e até pela coordenação de política econômica acabam tendo que fazer ajustes mais agressivos. Nesse caso, a recessão pode ocorrer, inclusive, de maneira mais pronunciada. Hoje, esse é o nosso cenário base para o Brasil.

"Nós vislumbramos um cenário bastante desafiador para o Brasil, mesmo na ausência de uma desaceleração global pronunciada"

Se ocorrer uma desaceleração muito forte da economia global, o Brasil pode ser arrastado?
Nós vislumbramos um cenário bastante desafiador para o Brasil, mesmo na ausência de uma desaceleração global pronunciada. Dito isso, a situação pode se tornar tão mais difícil quanto menos benigno for o ambiente externo. Os riscos poderiam se materializar através de um choque negativo dos termos de troca, com queda do preço de commodities, ou mesmo através de um aperto maior das condições financeiras globais caso a desaceleração não se materialize e os bancos centrais sintam a necessidade de elevar mais os juros do que o esperado. Se ocorrer uma recessão global, para o Brasil, será mais difícil fazer seu ajuste porque os prêmios de risco podem subir, o que, em nossa visão, aumentaria a urgência de um ajuste ainda mais agressivo na política fiscal.

Então, temos aqui uma questão de credibilidade?
Sim, esse é um desafio presente no debate de vários países, inclusive no caso brasileiro. O BC não precisaria elevar a taxa de juro mais se tivesse maior controle de expectativas de inflação e se o mix de política econômica tivesse credibilidade como um todo. Nesse sentido, a ação contra a inflação pode acabar provocando uma desaceleração grande da atividade.

Qual é o risco se o BC não atuar firmemente contra a inflação?
Em algumas economias, entre elas a brasileira, uma desaceleração mais forte acaba sendo necessária por conta do dano que uma inflação mais alta e persistente pode provocar no médio prazo. Os efeitos da inflação são piores do que aceitar uma desaceleração mais rápida da atividade no curto prazo. E entendemos que essa é a estratégia que o BC do Brasil adotou. Como não há inflação sem dor, então se paga um preço mais alto no curto prazo para se ter um ganho maior no médio e longo prazo.

Nesse cenário, qual é a perspectiva para a Selic?
Trabalhamos com Selic a 14%. Avaliamos que há uma comunicação muito clara do BC em relação à intenção de já encerrar o ciclo de aperto monetário. O balanço de riscos está para que o Copom não suba mais o juro na reunião de setembro. Mas como nossas projeções mostram atividade mais resiliente do que esperávamos e as expectativas de inflação para 2023 avançam, ainda temos um cenário base que comporta mais uma alta de 0,25 ponto percentual nos atuais 13,75% ao ano.

E a projeção para o PIB do Brasil?
Para 2022 é 1,8% e para 2023 é - 0,2%. O PIB do primeiro semestre foi bem mais forte do que esperávamos no fim do ano passado e alguns fatores explicam essa surpresa. O primeiro fator é o preço das commodities, bem mais alto e com efeito no Brasil em confiança e renda de setores como agricultura e mineração. O efeito renda se refletiu na arrecadação muito relevante. O segundo fator a impulsionar o PIB é a própria arrecadação que levou a uma política fiscal mais expansionista.

O ganho de arrecadação contribuiu para a resiliência da atividade?
Sim. O ganho de arrecadação, combinada aos preços de commodities e à própria recuperação da economia, levou à adoção de medidas de estímulo fiscal. Entre elas, redução de impostos, liberação de FGTS, antecipação do 13º salário de aposentados e pensionistas e as medidas mais recentes, como a redução do ICMS sobre combustíveis. Tudo isso tornou a economia mais resiliente. Há ainda outro fator de impulso à atividade que é o efeito de serviços devido à reabertura da economia.

E o fôlego do crédito conta?
Também conta. Nosso cenário era de que o aperto monetário levaria a um aumento de custo e à desaceleração da atividade. Mas, apesar da restrição de dados disponíveis – inclusive pela greve dos servidores do BC com atualização das estatísticas até abril – o crédito seguiu forte. E isso é observado, inclusive, nos balanços dos bancos referentes ao segundo trimestre deste ano. O crédito às pessoas físicas ficou bem forte. E uma análise detida desse segmento específico mostra também que ocorreram mudanças estruturais relevantes. Uma delas é a presença importante dos bancos digitais no crédito com aumento da fatia de mercado dessas instituições na concessão para famílias.

Esses fatores que impulsionaram a atividade esse ano vão desaparecer em 2023?Os preços das commodities já atingiram o pico, que ficou para trás. Daqui para frente, devemos ter alguma moderação desses preços. A política fiscal também já atingiu um limite quando se analisa a trajetória de endividamento (do País). E os indicadores do setor de serviços também dão sinais de que a demanda reprimida começa a normalizar. O crédito é uma grande incógnita, mas os bancos se mostram mais cautelosos na entrada do segundo semestre. Além disso, o fato de o PIB ter surpreendido para cima levou o BC a um ajuste mais agressivo da taxa Selic. A taxa de juro ficou mais restritiva.

Há um desaquecimento importante a caminho?
Tenho convicção de que teremos desaceleração da economia para frente. E daí, projetamos retração de 0,2% para o PIB em 2023. Hoje, quando analiso o balanço de riscos, a minha convicção segue nessa direção. A dúvida é quanto ao timing em que a desaceleração vai acontecer. Quando os serviços vão chegar ao limite e passarão à reversão e quando os bancos podem ser mais seletivos no crédito ante a perspectiva de inadimplência. Há também a mensurar o quanto do impacto fiscal promovido pelas medidas do governo (auxílios) ocorrerá no terceiro trimestre. O PIB do terceiro trimestre pode ser até mais forte, ter viés para cima. Mas o PIB do quarto trimestre terá um viés para baixo.

A mudança de governo a partir de 2023 muda mudar essa perspectiva de desaquecimento da economia?
Não diria que é a mudança de governo, mas as eleições têm relevância em função da falta de visibilidade que temos hoje quanto à política econômica para os próximos quatro anos. Falta de visibilidade e de previsibilidade afetam a confiança. E, por consequência, a intenção de investimento privado. Mais até pela dúvida do que pelo receio de que algo de ruim será feito.

Há muita expectativa quanto à política fiscal...
Com todas as decisões tomadas, entendemos que é difícil que o próximo governo mantenha o teto de gastos, pelo menos no formato que existe em lei, uma vez que o espaço político e a demanda social vão acabar influenciando. E não temos visibilidade sobre o que poderá ficar no lugar (do teto de gastos) e o quanto isso poderá afetar a credibilidade do País ou provocar uma explosão da dívida pública.

A dúvida quanto à política econômica interfere nas decisões?
Enquanto persiste a dúvida sobre como será feito o ajuste fiscal, o investimento fica retraído, porque ajuste fiscal só ocorre de três maneiras: com corte de gastos ou gastos mais eficientes e necessários para a economia e investimentos; pelo lado das receitas que, numa visão positiva, seria com crescimento econômico mais forte e com reformas que elevem produtividade e com efeito sobre a arrecadação; ou com aumento de carga tributária. Se o ajuste não ocorrer por nenhuma dessas alternativas, acaba ocorrendo da pior forma, que é pela inflação.

"Entendemos que é difícil que o próximo governo mantenha o teto de gastos, pelo menos no formato que existe em lei, uma vez que o espaço político e a demanda social vão acabar influenciando"

Qual é sua avaliação sobre a gestão econômica do atual governo?
Temos pontos positivos e negativos. A reforma da Previdência aprovada foi muito importante e até melhor do que as propostas anteriores. E tivemos aqui o mérito da equipe econômica e também do Congresso. Tivemos uma série de reformas microeconômicas de regulação que também foi importante e positiva. E destaco a Lei do Saneamento, que permite investimentos, a Lei de Falências e também as decisões que reduzem a burocracia e melhoram o ambiente de negócios. Várias medidas caminharam na direção certa. Podemos até questionar se foram suficientes, mas foram relevantes.

Sobre política fiscal, o teto de gastos é uma âncora necessária?
Existe muita crítica ao limite do teto de gastos, que engessa o orçamento, mas o teto foi muito importante por trazer previsibilidade ao mercado e também por trazer à discussão do público a noção da reciprocidade. Onde o governo gasta? E se precisamos gastar, onde cortamos? Se quer aumentar investimentos, onde se faz outros ajustes. Essa discussão é muito saudável. Não existia discussão sobre o orçamento público. Para frente, sabemos que o próximo governo, qualquer que seja, terá que fazer mudanças. E a questão é saber como obter a mesma credibilidade que o teto de gastos adquiriu, inclusive, pela maneira como ele foi criado.

Foi criado em meio a uma troca de governo...
O teto de gastos não foi uma medida ultra ortodoxa tomada num processo de ajuste fiscal. Ele foi feito no momento em que a economia estava numa recessão profunda, com o PIB em queda de mais de 7%, em 2015/2016, em meio a uma crise de credibilidade, e a solução encontrada foi a de que a sociedade, que já atravessava uma recessão profunda, não aguentaria fazer o ajuste (imediato) que seria necessário, de quase 4% do PIB. Então, o acordo foi de se fazer o ajuste em 10 anos. E isso permitiu uma série de mudanças positivas no Brasil, inclusive, permitiu que a taxa de juro caísse a um dígito muito antes da pandemia.