Conforme a personagem-título de “Tarsilinha” passeia pelo cenário do filme de animação, a paisagem tropical brasileira salta aos olhos. Como o título já adianta, a produção é inspirada nas obras de Tarsila do Amaral (1886-1973), a pintora que se tornou um ícone do Modernismo no Brasil.
Assistir ao filme, que estreia no dia 17 de março nos cinemas, é como visitar uma exposição da artista conhecida pelas cores vivas, pelas paisagens de florestas e pelos elementos da fauna, da flora e do folclore nacional em suas obras. É como se as pinturas de Tarsila estivessem em movimento, com foco nas fases Pau-Brasil (1924-1928) e Antropofágica (1928-1930).
Ao iniciar as suas aventuras, Tarsilinha mergulha nas águas que desembocam em lago cercado por uma vegetação com toque surreal, com plantas lembrando animais. É uma recriação da obra “O Lago”, realizada em 1928, apresentando uma realidade primitiva e ingênua do Brasil.
“Inicialmente, o que fizemos foi decupar a obra de Tarsila, para colocarmos elementos de suas pinturas e também de seus desenhos em uma espécie de banco de imagens”, conta Kiko Mistrorigo, que codirigiou o filme com Célia Catunda.
“A partir de coqueiros, manacás, montanhas e casinhas da zona rural, entre outras coisas, criamos paisagens tarsilescas. Recorremos ao imaginário da artista, para oferecer um outro ponto de vista. Não é o mesmo de quem está diante de um quadro. O seu conteúdo está lá, mas não é exatamente a pintura”, diz Mistrorigo.
O maior desafio para os diretores, que são os fundadores da produtora de animação Pinguim Content, inaugurada em 1989, foi criar um desdobramento. A proposta foi realizar uma produção de animação original, algo que homenageasse a artista, propondo algo novo ao mesmo tempo.
“Tivemos uma matéria-prima maravilhosa ao entrarmos no universo que ela criou. O conjunto da obra já sugere um mundo à parte, original e mágico. São pinturas que dialogam entre si, por apresentarem um mesmo ambiente”, afirma Célia, referindo-se à característica de Tarsila de enaltecer as cores da natureza do Brasil na tela, como o verde, o amarelo e o azul.
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Pinturas como “Sol Poente” (1929), “A Gare” (1925), “O Sapo” (1928) e “A Feira” (1924) foram selecionadas em função da história que os diretores queriam contar – no caso, uma trama para animação para toda a família e não exclusivamente para crianças. Eles são mais conhecidos como os criadores das séries de animação infantis “Peixonauta” e “O Show da Luna!”.
A ideia de levar o imaginário de Tarsila ao mundo da animação partiu da sobrinha-neta da artista, conhecida como Tarsilinha, que já lançou linha de tecidos, roupas, sandálias e tapetes, entre outros produtos, inspirados no legado da tia. Mas a história para o filme ficou por conta da dupla de diretores.
Um quadro determinante para a criação de “Tarsilinha” foi “A Cuca’’, obra de 1924 em que a artista emprega cores alegres e imagens estilizadas, evocando a infância. “Dali tiramos o ambiente para a narrativa e também personagens como a própria cuca, o tatu-pássaro, o sapo e a lagarta, que foram incorporados”, diz Célia.
O enredo gira em torno de uma garota de oito anos que cai no mundo, fazendo vários amigos e alguns inimigos pelo caminho. Ela embarca na aventura para recuperar as memórias roubadas de sua mãe – o que acontece após o sumiço de objetos pessoais de sua caixa de lembranças.
“O fato de termos no filme um personagem que coleciona objetos de famílias tradicionais, para tentar criar uma memória própria, é uma alusão ao movimento de 1922”, conta Mistrorigo, referindo-se Modernismo, iniciado com a Semana de Arte Moderna (de 11 e 18 de fevereiro), que está comemorando o seu centenário.
“Reforçamos o significado do Modernismo na trama, já que o movimento buscava reunir memórias da nossa cultura para a criação de algo essencialmente nosso”, afirma Célia, lembrando que “Abaporu”, de Tarsila, se tornou um símbolo da arte moderna brasileira.
Pintado em 1928, o quadro que a artista deu de presente ao marido, Oswald de Andrade, foi a marca do movimento Antropofágico. Com o “homem que come gente” (tradução do título em tupi-guarani), a ideia era deglutir as influências estrangeiras, sobretudo a europeia, e usá-las criativamente para estabelecer a identidade nacional na arte.
Nascida no interior de São Paulo, em Capivari, e influenciada por tendências europeias, por conta de várias temporadas estudando pintura em Paris, Tarsila entendia perfeitamente o conceito.
Seu “Abaporu” exaltava elementos brasileiros com a figura do homem sentado, com cabeça pequena e braços e pernas enormes, em paisagem com sol e um cacto. E, de quebra, ainda fazia uma crítica social por sugerir a condição de trabalhador braçal do povo, impedido de pensar.
“Por ser uma obra tão emblemática, foi difícil incorporar ‘Abaporu’ na narrativa, sem quebrar o mistério que ela traz”, conta Célia. Para evitar “spoiler”, ela só adianta que a figura que representa o brasileiro comum foi usada em momento simbólico do filme, ligado à apropriação de memórias alheias.
“O ‘Abaporu’ trouxe formas inusitadas e cores inesperadas em uma época em que a luminosidade tropical era um escândalo, considerada de mau gosto nas artes”, afirma Mistrorigo, acrescentando que Tarsila não se rendeu ao “eurocentrismo”. Por ter vindo da França, ela poderia fazer algo parecido com o que tinha visto lá, o que seria uma influência natural. Mas não. Ela teve coragem de romper, com obras que até hoje têm força e frescor”, diz ele.