A crise climática impõe desafios sem precedentes aos sistemas agrícolas tradicionais. Secas, inundações, ondas de calor e doenças ameaçam as plantações e colocam em risco a segurança alimentar global. Mas, graças aos avanços da biologia molecular, a ciência avança no desenvolvimento de ferramentas capazes de criar espécies mais nutritivas, mais resistentes às intempéries e pragas e, definitivamente, mais duráveis. Entramos na era dos alimentos editados geneticamente.
Há muito tempo os pesquisadores buscam uma forma de interferir no genoma das plantas, sem a inclusão de DNA de espécies ou organismos diferentes. A ideia é acelerar em laboratório um processo que a natureza levaria muito tempo para concluir e silenciar os genes associados às piores características da planta. É a versão hightech da seleção natural, Charles Darwin.
Há uma variedade de plataformas de edição de genômica disponível no mercado, como a ZFN, a ARCUS e a TALENs. Mas foi a CRISPR/Cas9 a responsável por trazer a tecnologia para o mainstream, com uma ferramenta mais precisa, eficiente, rápida e barata, conforme analistas da empresa The Business Research Company, consultoria de inteligência e pesquisa de mercado.
Desenvolvida, em 2012, a CRISPR/Cas9 rendeu o prêmio Nobel de Química, de 2020, para a geneticista francesa Emmanuelle Charpentier e a bioquímica americana Jennifer Doudna. Batizada “tesoura genética”, a tecnologia permite cortar e excluir (ou substituir), com muita precisão, trechos específicos da fita do DNA e, assim, controlar a síntese de determinadas proteínas, para a criação de plantas economicamente desejáveis.
“As tesouras genéticas levaram as ciências da vida a uma nova etapa e, de muitas maneiras, vêm trazendo enormes benefícios para a humanidade”, lê-se no texto de apresentação da Academia Sueca, responsável pela honraria. Na medicina, por exemplo, a tecnologia vem sendo usada para o diagnóstico e tratamento de uma série de doenças, em especial o câncer.
O mercado global de venda de tecnologias de edição genômica deve fechar o ano em US$ 6,35 bilhões – aumento de cerca de 15% em relação ao ano passado. Em 2026, a expectativa é a de que o setor movimente US$ 12,04 bilhões, a uma taxa de crescimento anual de 14,4%. As estimativas da The Business Research Company incluem os negócios fechados também na saúde, e não apenas no setor agroalimentar.
Em tempos de escassez de terra, crescimento exponencial da população e muito desperdício ao longo de toda a cadeia (da colheita ao prato do consumidor), a edição de genes acena com a possibilidade de uma agricultura mais precisa, produtiva e sustentável. Em 2050, seremos 10 bilhões e, se nada mudar, não haverá comida para alimentar tanta gente.
A edição gênica é usada atualmente em, pelo menos, 46 tipos de culturas diferentes, conforme levantamento da National Farmers Union of England and Wales. Arroz, tomate, milho, soja, tabaco, alfafa, trigo, algodão, cannabis... Para os consumidores, a tecnologia promete trigo sem glúten, cogumelos que não escurecem, verduras, legumes e frutas mais coloridos, saborosos e que aguentam mais tempo na geladeira, sem perigo de estragar.
Para os agricultores, “as tesouras genéticas” possibilitam a produção de arroz sem o gene OSRR22, da vulnerabilidade ao sal; bananas sem giberlinas e, consequentemente, menos suscetíveis a ventos fortes, tufões e tempestades, e milho mais tolerante ao tempo seco, graças ao aumento da expressão do gene ARGOS8.
O primeiro alimento editado geneticamente a ser comercializado no mundo foi o tomate da startup japonesa Sanatech Seed, em 2021. Com o uso do método CRISPR/Cas9, os pesquisadores da empresa desenvolveram uma fruta farta em GABA, neurotransmissor inibitório do sistema nervoso central, associado à sensação de relaxamento e a redução da pressão arterial. Imagine, só, chegar do trabalho e comer uma saladinha para aliviar o estresse.
“Na maioria dos casos, a edição de genes está sendo aplicada em commodities agrícolas”, diz Nicholas Karavolias, microbiologista da Universidade da Califórnia, em Berkeley, no trabalho Application of gene editing for climate change in agriculture, publicado na plataforma científica Frontiers. “É importante também usar essa tecnologia inovadora à totalidade da biodiversidade ameaçada pelas mudanças climáticas.”
Apontada como um dos pilares do futuro da alimentação, a tecnologia de edição genômica vem movimentando o ecossistema das agtechs. Fundada em 2021, a startup israelense ClimateCrop já recebeu quatro rodadas de investimento seed, dos fundos SOSV, IndieBio, e ZeroCarbon, os três sediados nos Estados Unidos, e do UMP6P, do Marrocos. Os investidores marroquinos querem impulsionar a edição genética para aumentar o potencial das culturas de tomate e batata do país. Os valores dos aportes não foram revelados.
No final de 2021, a inglesa Phytorform, com sede em Londres e Boston, tinha pouco mais de três anos história, quando dobrou seu quadro de funcionários, graças a uma rodada de investimentos, liderada pela Eniac Ventures, empresa americana de investimento seed – US$ 5,7 milhões entraram nos cofres da startup.
Utilizando o CRISPR e learning machine, hoje são 12 pesquisadores dedicados a desenvolver tomates mais resistentes ao mau tempo e cujos caules soltam facilmente. Nas lavouras convencionais, as frutas são arrancadas do pé com o cabinho, o que pode machucar e inutilizar o produto durante o transporte. “À medida que a crise climática se agrava, passamos a prestar mais atenção em como a genômica computacional pode ajudar a reduzir o desperdício e a melhorar a qualidade dos alimentos”, disse à época, em um comunicado, Vic Singh, fundador da Eniac.
Algumas agtechs de edição de genes já estão nas bolsas de valores. A americana Calyxt é uma delas. Fundada em 2010, em Minesota, a empresa chegou à Nasdaq no final de 2019. Por meio da ferramenta TALENs, produz batata resistente às pancadas do transporte entre a lavoura e os pontos de venda. Dos laboratórios da empresa, saem também trigo rico e pobre em glúten; canola com pouca gordura saturada e soja rica com altos teores de óleos insaturados.
No Brasil, com o CRISPR/Cas9, a Embrapa desenvolveu dois novos tipos de cana de açúcar, Flex I e Flex II. Mediante a supressão do gene BAHD1, a primeira passou a ter uma parede celular mais fácil de ser quebrada e, com isso, melhora o aproveitamento da biomassa do produto para a geração de energia e a nutrição animal. Como o silenciamento do gene BAHD2, a Flex II tem uma concentração maior de sacarose, o que garante a alta produtividade da planta.
A edição de genes é mais barata, rápida e precisa do que o melhoramento genético tradicional e a transgenia. Por esse último método, o DNA de uma planta é alterado mediante a introdução de material genômico de outras espécies. Desenvolvidos nos anos 1990, os alimentos transgênicos exigem uma quantidade enorme de agrotóxicos e herbicidas para seu cultivo, o que sempre incomodou os ambientalistas e assustou a população.
Como a nova tecnologia não usa DNA exógeno, mas trabalha com variações genéticas da própria espécie, pré-existentes na natureza, os alimentos editados tendem a ser aprovados com mais celeridade, são mais bem recebidos pelos ativistas do clima e não devem causar medo nos consumidores.