O mercado de saúde suplementar no Brasil está novamente em crescimento. O setor registrou um aumento de 207,4 mil beneficiários no ano passado e atingiu o maior número de vidas em oito anos. Com a expansão de 3,25% em 2022, o total de 50,49 milhões de beneficiários se aproxima do ápice de 50,54 milhões registrado em 2014. Esse cenário tinha tudo para ser uma alegria para as healthtechs, mas não é o que tem acontecido.

Alice e Sami Saúde são duas das mais promissoras novas entrantes no mercado de saúde. Nas últimas semanas de 2021, elas agitaram o setor com duas captações. A primeira recebeu US$ 127 milhões em rodada de série C liderada pelo Softbank. Foi o maior cheque para uma startup de saúde na América Latina. A segunda captou US$ 19,8 milhões em financiamento em rodada liderada pela gestora do Reino Unido DN Capital.

Embora essas injeções de capital tenham posicionado Alice e Sami como as principais postulantes a liderarem uma mudança em um mercado que, segundo estimativas da iPC Maps, pode ter movimentado mais de R$ 180 bilhões em 2022, elas não escondem a dificuldade para acelerar o crescimento e acompanhar o desempenho das empresas tradicionais.

Ao longo de 2022, Alice e Sami não colocaram em prática os planos agressivos de crescimento pós-aportes. Em um ano marcado por uma reviravolta no mercado de tecnologia, que tornou os investidores mais conservadores, as duas empresas desaceleraram, demitiram e agora têm suas tentativas de disrupção sob ameaça de rivais tradicionais do setor.

Desde a última captação, ainda que tenha triplicado sua receita de R$ 24,4 milhões para R$ 77,6 milhões, a Alice não conseguiu dobrar a sua base de clientes segurados, passando de 6 mil para 11,5 mil vidas.

“Ajustamos o plano de crescimento pensando no que é bom para a companhia no longo prazo”, diz André Florence, CEO e cofundador da Alice ao NeoFeed. “Não era o que a gente pensava em 2021, mas graças a Deus a gente levantou a rodada no fim do ano e que dá tempo para executar o plano.”

O cenário foi parecido na concorrente Sami. No fim de 2021, a startup tinha cerca de 7 mil vidas em seu plano de saúde voltado para PJs, principalmente microempreendedores individuais (MEI). A companhia chegou a aumentar esse número para 15 mil em 12 meses, mas a expectativa na época era, ao menos, triplicar a base de clientes.

Matheus Moraes, André Florence e Guilherme Azevedo Alice
Matheus Moraes, André Florence e Guilherme Azevedo, cofundadores da Alice

O CEO e cofundador da Sami Vitor Asseituno segue confiante de que vai atingir as metas. Com faturamento de cerca de R$ 60 milhões no ano passado, a previsão é triplicar a receita neste ano. Isso seria feito com a oferta de planos premium e com tíquete mais elevado e diversificando a carteira de clientes de MEIs para empresas maiores com cerca de 200 funcionários.

Para 2023, a meta é mais do que dobrar o número de segurados. “Queremos terminar o ano tendo entre 30 mil e 35 mil vidas”, afirma Asseituno, que diz estar “olhando para um novo aporte” que poderia acontecer ainda neste ano, mas que “levantar capital não depende apenas da companhia”. Outra meta para o ano é atingir o breakeven do negócio. Na Alice, não há previsão para que isso seja feito no curto prazo.

Mas a verdade é que está cada vez mais difícil acompanhar de perto as gigantes do setor como Hapvida, Unimed, Amil, SulAmérica, que juntas concentram dezenas de milhões de beneficiários em seus planos.

Nos últimos anos, as gigantes do setor começaram a verticalizar suas operações com acordos de M&A que aumentaram sua capacidade de atendimento. Foi o caso da união de Rede D'Or na SulAmérica, que criou uma empresa avaliada em mais de R$ 73 bilhões. E da junção de negócios entre Hapvida e Grupo NotreDame Intermédica, duas gigantes do setor privado de saúde.

“Por algum motivo essas startups estão indo na direção contrária de um setor que está verticalizando e se tornando cada vez mais dono de toda a estrutura”, disse um sócio de uma gestora de venture capital que pediu para não ser identificado. “O que a gente escuta entre os investidores é que essas startups estão tendo dificuldade para crescer e ganhar mercado.”

Outro investidor disse ao NeoFeed que nenhuma dessas empresas tem uma rede forte para atender os seus clientes, "porque isso é caro de fazer". E concluiu: “O mercado precisa parar de confundir healthtechs com operadoras de saúde. São coisas diferentes.”

Ainda que conte com hospitais de referência como Albert Einstein, Beneficência Portuguesa, Oswaldo Cruz, tanto Sami como Alice ainda possuem uma rede enxuta de hospitais em seu plano empresarial.

A primeira está presente somente no estado de São Paulo, enquanto a segunda já expandiu para outros estados, mas tem somente um ou dois hospitais na maior parte deles. Isso inviabiliza que essas empresas consigam firmar acordos para o oferecimento de seus planos no B2B para companhias com funcionários em outras regiões.

“Quando a gente levantou capital, tínhamos uma expectativa de crescimento. Quando vimos que isso não aconteceria, precisamos ajustar as contas e concluímos que precisávamos reduzir a folha de pagamento”, diz Florence. Segundo o executivo, o plano era captar um novo investimento no ano passado, o que não ocorreu.

A dificuldade para captar mais dinheiro e consequentemente conseguir reduzir a diferença dos números para as gigantes do setor não é o único sintoma enfrentado pelas startups. Um dos problemas pode estar na falta de diferenciais competitivos que façam o consumidor que ainda não tem um plano optar por essas startups.

O que atraiu os investidores, além do impacto da telemedicina durante a pandemia, foi a criação de um novo formato de fazer o atendimento dos pacientes, focando principalmente em serviços de triagem e no uso de tecnologia para reduzir custos. Ambas apostam na tese de médicos de família que ajudam na prioridade dos pacientes e na prevenção de problemas de saúde.

Mas as rivais do setor fizeram a lição de casa para reduzir esse gap. Conforme apurado pelo NeoFeed com fontes do mercado, as operadoras de saúde podem diminuir em até 50% seus custos com cada cliente ao implementar tecnologias que automatizam o processo. Isso envolve o atendimento por telemedicina, o agendamento automático de consultas, prontuários eletrônicos, mudanças no serviço de atendimento ao consumidor, entre outras práticas.

Um segundo diferencial que parece ter perdido um pouco sua atratividade é o preço. A Sami, que se posicionou como uma empresa low cost dos planos de saúde, é um exemplo ao oferecer uma cobertura individual por menos de R$ 200 por mês. Empresas como Unimed, Amil e Hapvida também já criaram opções mais econômicas de seus convênios.

Vitor Asseituno Sami
Vitor Asseituno, cofundador e CEO da Sami

Ao tentar provar que a tese de investir em tecnologia pode ajudar a reduzir os custos, Sami e Alice agora enfrentam uma batalha de Davi e Golias para tentar se posicionar como planos de saúde competitivos mesmo frente a uma concorrência contra as gigantes do setor que também já vêm investindo em tecnologia.

“O crescimento é mais devagar, mais organizado e com maior retorno sobre o investimento”, diz Florence, da Alice. “Eu não estou olhando os 50 milhões de clientes do mercado suplementar, mas para os 100 milhões que não tem plano”, complementa Asseituno, da Sami.

Os próximos meses devem dar uma indicação maior do que esperar do futuro dessas empresas que ao olhar dos investidores eram healthtechs, mas que se posicionam cada vez mais como prestadoras de serviço.

*A reportagem foi atualizada no dia 10/02 para atualizar os números da Alice em relação sua base de clientes e rede de hospitais, além de incluir a receita da companhia.