A economia foi sentindo os efeitos do coronavírus aos poucos, até acusar o baque de ver tudo completamente parado. Há, entretanto, um setor que sentiu o impacto do Covid-19 bem antes do que todos: o aéreo.
Quando todos se perguntavam o que aconteceria se a doença se espalhasse pelo País, as companhias aéreas já viam cancelamento de voos internacionais, os aeroportos minguarem e suas ações despencarem na bolsa.
A situação piorou de vez quando o lockdown horizontal foi decretado no Estado de São Paulo, que seguiu as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS). Diante disso, as empresas aéreas reduziram drasticamente suas ofertas de voos diários.
A Azul, dona de uma receita de R$ 11,4 bilhões no ano passado, foi uma delas. Da noite para o dia, parou de voar para 75 destinos e 90% de seus voos foram interrompidos. Dos 150 aviões em sua frota, 130 estão no chão, estacionados, o que gera perdas mensais de quase R$ 260 milhões.
“O impacto no nosso negócio tem sido brutal”, diz John Rodgerson, CEO da Azul, em entrevista exclusiva ao NeoFeed. Suas ações negociadas na bolsa caíram 69,8% desde o dia 19 de fevereiro e atualmente a empresa vale quase R$ 6 bilhões. De um total de 14 mil funcionários, mais de 10 mil aderiram a um plano voluntário de licença não remunerada para preservar os empregos.
Na entrevista que segue, Rodgerson fala sobre a necessidade de uma saída para a economia, diz que o governo brasileiro deveria ser mais rápido nas tomadas de decisão, comenta sobre o a proposta de financiamento do BNDES, o exemplo de resgate do setor nos EUA e pede uma melhor coordenação entre os poderes para resolver a crise. Acompanhe:
O setor aéreo foi o primeiro a sentir a crise do coronavírus, antes do comércio e do varejo. Como foi essa avalanche?
É interessante porque há menos de um mês a receita ainda estava boa. As vendas de voos internacionais tinham caído, mas achávamos que era por conta do dólar, porque naquela época as fronteiras não estavam fechadas. Mas isso evoluiu muito rápido. Falei para a minha esposa que o primeiro trimestre desse ano foi o mais longo da minha vida. Gostaria que tudo isso passasse. Se você pensar, o Carnaval parece ter sido uma eternidade atrás.
Mas quando a empresa começou a sentir os efeitos dessa crise causada pelo coronavírus?
Começamos a sentir alguns sinais no carnaval. Logo depois as receitas começaram a cair 15%. Mas realmente impactou quando o Doria (governador de São Paulo, João Doria Jr.) começou a fechar São Paulo.
Qual foi o impacto disso?
Quando isso aconteceu a nossa receita secou a quase 100%. Hoje, 90% da nossa frota está no chão, estamos fazendo somente voos essenciais junto com os governos. Muitos lugares precisam de voos para trazer médicos e medicamentos. Agora estamos tentando ajudar a combater esse vírus como todos, mas o impacto no nosso negócio tem sido brutal.
“Hoje, 90% da nossa frota está no chão”
Você acha que o lockdown despertou as pessoas? Antes todos estavam voando normalmente?
Acho que sim, muitas pessoas não entenderam o vírus. Até dentro do governo tem gente que acha que devemos tomar medidas diferentes. O que temos de fazer é obedecer a lei. Temos um escritório com 1 mil pessoas, em São Paulo, e apenas dez pessoas estão vindo.
Aliás, a Azul tem 14 mil funcionários. Como manter todos nessa situação?
Quase 10 mil pessoas vão tirar licença não remunerada. Eles se voluntariaram. É uma grande ajuda, a Azul é uma grande família. Alguns vão tirar o mês de abril, outros abril e maio, e outros vão até junho. É muita incerteza agora. ‘Quando voltaremos a voar normalmente?’ Ninguém sabe. Espero que seja em junho ou julho. Mas, até a semana passada, achávamos que seria uma coisa de duas semanas e está parecendo que vai estender.
Você acha que, passado tudo isso, as pessoas voltarão a voar normalmente?
Nossas aeronaves são sempre limpas quando estão no chão, o sistema de filtragem do ar é igual ao de uma UTI, é renovado a cada dois minutos. Viajar é seguro. O que acho triste é que neste ano a economia estava indo bem. Fico triste porque parou. O mundo inteiro parou e não é algo que tenha a ver com o Brasil. O mundo inteiro está na mesma situação.
Mas, mesmo liberando todos a saírem às ruas, não acredita que vai demorar a voltar ao ritmo que estava?
Tudo depende da economia. Eu diria que tem muita gente que está presa em casa e vai ter muita vontade de ir para a praia, para outros lugares e sair de casa. Para isso, tem que ter emprego, ter dinheiro. Temos que tomar muito cuidado para não destruir a economia neste processo.
“Temos que tomar muito cuidado para não destruir a economia neste processo”
O que fazer?
Olha o que está sendo feito nos Estados Unidos. Eles tiveram um grande aumento no desemprego por conta deste vírus. O Congresso está fazendo todo o possível para ajudar o trabalhador, ajudar a economia e para não entrar em recessão. Os governos ao redor do mundo estão agindo rápido e têm de agir rápido porque, senão, o problema da economia pode ser bem pior do que o vírus em si.
Qual é a sua avaliação sobre a atuação do governo brasileiro?
Acho que o governo está agindo, mas tem de ser mais rápido. E tem de ter o Congresso junto para aprovar medidas emergenciais para salvar emprego. Acho que, se eles pudessem coordenar melhor, ajudaria muito. Pode ver que ninguém do partido democrata gosta do Trump (presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que é do partido republicano). Mas eles aprovaram um pacote de US$ 2 trilhões com 100% de votação de ambos os lados. Temos de olhar a situação atual do mundo e do Brasil como se fosse uma guerra. Nunca tivemos algo similar desde a Segunda Guerra mundial. O mundo inteiro está parado. Acho que partidos políticos têm de deixar as diferenças de lado e temos de fazer tudo para ajudar o povo brasileiro.
Mas o presidente também de tem de olhar para isso como se fosse uma guerra e não uma gripezinha...
Acho que todo mundo deve olhar isso. O mundo está olhando isso dessa forma. Talvez a opinião do presidente Bolsonaro seja diferente da do Doria, por exemplo, mas isso não quer dizer que o amor que eles têm pelo povo brasileiro seja diferente. Eles têm de entender como salvar vidas e a economia ao mesmo tempo.
“O governo está agindo, mas tem de ser mais rápido. E tem de ter o Congresso junto para aprovar medidas emergenciais para salvar emprego”
Falando em economia, o BNDES anunciou uma linha de crédito para ajudar as empresas aéreas. Isso, de fato, consegue amenizar a situação das companhias?
Isso com certeza vai ajudar. Mas sempre digo o seguinte: ‘olha o que está acontecendo nos Estados Unidos’. Deve ser o exemplo para o Brasil. Eles estão dando dinheiro e empréstimos para as companhias aéreas porque eles sabem o quão importante as empresas são para o país. Aqui, estamos falando em empréstimos com o BNDES e eles sempre querem um valor de mercado. Temos de tomar cuidado porque não podemos olhar as empresas aéreas agora. Temos de olhar as empresas aéreas antes de entrarem nesta crise. Esta não é uma crise de gestão, essa é uma crise do mundo. As medidas do BNDES são boas, vão ajudar, mas temos de ter muito cuidado: ‘a qual preço?’. O preço da dívida vai impactar o futuro da indústria que estava crescendo. Se você bota condições financeiras com custo muito alto, vai prejudicar o crescimento da nossa indústria daqui para frente.
De que forma?
Não posso concorrer no mundo inteiro quando a American Airlines está recebendo dinheiro do Trump e nós estamos recebendo empréstimos do governo brasileiro com condições de mercado. Ainda não temos nada formal com o BNDES, mas temos de tomar cuidado porque este é o momento de salvar vidas, empregos e as indústrias que vão ajudar a recuperar a economia depois. Só a Azul estava para receber 25 aeronaves da Embraer. Tenho de ter boas condições financeiras senão vai atrapalhar a Embraer, olha quantas pousadas no Nordeste do País, quantas cidades que servimos. Para retomar a economia, precisamos de empresas saudáveis.
Na sua opinião, o que seria o ideal?
Ninguém está pedindo dinheiro para o governo, apesar de outros países estarem recebendo. Mas deve haver taxas pré-crise. Não tem mercado no Brasil agora.
Mas um subsídio ajudaria...
Ia ajudar muito, mas é um luxo que os americanos têm e que o Brasil não tem.
“Não posso concorrer no mundo inteiro quando a American Airlines está recebendo dinheiro do Trump e nós estamos recebendo empréstimos do governo brasileiro com condições de mercado”
Com os empréstimos, o BNDES poderia ter participação nas empresas...
Participação a qual preço? Hoje nossas ações estão sendo negociadas a R$ 20 e um mês atrás eram negociadas a R$ 60. Isso não é hora de aproveitar o momento em que as ações estão muito baixas. Devemos fazer coisas para ter o mercado saudável, com liquidez.
Quais outras medidas por parte do governo você acha que seriam importantes? Desoneração da folha de pagamentos, por exemplo?
Isso seria muito importante porque, só a Azul, tem 14 mil funcionários. Minha visão é a de que temos um problema de capital de giro e depois precisaremos de um pacote pós-crise para estimular o mercado, para ter pessoas viajando e ter muita gente frequentando hotéis e restaurantes, como se fosse um jump start da economia. Isso é desonerar folha, baixar o ICMS. O nosso negócio gera muito imposto para o governo. Só a Azul pagou R$ 2,5 bilhões em impostos e não está na conta o que a Embraer e os hotéis pagaram de imposto. Também contratamos 2,5 mil pessoas no ano passado. Então, uma indústria de aviação saudável ajuda muito o País. Neste momento tivemos de sair de 75 cidades e isso não é bom para a economia brasileira.
Você está conversando com o governo sobre esses pontos?
Acho que o governo tem boa vontade, mas acho que o problema hoje é bem diferente do problema de duas semanas atrás. Temos de estar cientes do que está acontecendo na Europa e nos Estados Unidos, o alvo está mudando todo dia. Talvez o que pudesse ter sido resolvido um mês atrás é bem diferente do que hoje. Acho que temos de olhar as condições atuais, o que estamos faturando hoje não é o que faturávamos há duas semanas. Por isso, sempre tem que ter conversa aberta sobre o que está acontecendo neste momento. Em inglês, chamamos de moving target, o alvo muda todo dia. A quarentena em São Paulo vai ser 15 dias, 30 dias, vai ser fim de abril, maio? A gente não sabe ainda. Por isso o governo tem de estar bem perto da economia para entender quais são as melhores medidas para ajudar.
O governo não está próximo?
O ministro Guedes (Paulo Guedes, ministro da Economia) e o ministro Tarcísio (Tarcísio de Freitas, ministro da Infraestrutura) estão cientes. Eles estão fazendo coisas para ajudar, sim. Mas têm que fazer muito mais e mais rápido para salvar mais empregos possível, para ter a economia depois.
“Eles (os ministros Paulo Guedes e Tarcísio de Freitas) estão fazendo coisas para ajudar, sim. Mas têm que fazer muito mais e mais rápido para salvar mais empregos possível, para ter a economia depois”
Falando em empregos, se os funcionários não tivessem se voluntariado ao programa de licença não remunerada, você conseguiria mantê-los?
Aí teríamos de fazer uma negociação via sindicato para reduzir os salários para manter os empregos. Mas eu acredito que o Brasil vai voltar. Não quero demitir gente agora porque ainda tenho 150 aeronaves e pretendo voar com essas aeronaves em julho. A melhor coisa para o Brasil, para não ter desemprego alto, são medidas como a licença não remunerada.
Então você acredita que, em julho, tudo volta à normalidade?
Estamos voando 70 voos por dia em abril, vamos para 300 em maio, talvez 700 em junho e, em julho, volta para 900 voos diários.
No início do ano, a Azul anunciou a compra da companhia regional TwoFlex por R$ 123 milhões e, logo depois, anunciou a compra de 75 aviões da Embraer. Tudo isso está mantido?
Talvez o tempo de entrega seja um pouco diferente, mas temos a intenção de pegar esses aviões. Mas, de novo, a empresa tem de estar saudável e temos de ter uma economia recuperada.
E em relação a TwoFlex, se arrepende de ter comprado a companhia pouco antes de estourar essa crise do coronavírus?
Acho que o timing não é o ideal para nós. Mas a Azul está olhando três ou cinco anos para frente. E a TwoFlex é muito importante por isso. Estamos felizes com a negociação que fizemos, dá mais acessos a slots no aeroporto de Congonhas para a gente e vai ajudar muito a nossa empresa de carga. A situação agora não é normal. O mundo está parado. É meio binário. Vai ter mundo depois ou não? Se vai ter mundo, quer dizer que é um bom negócio para a Azul.
A Azul tem caixa para aguentar essa crise?
Ninguém, nenhum gestor do mundo, está preparado para ter três ou quatro meses sem receita e ter todo o custo vinculado a isso. A empresa aérea mais saudável do mundo é a Delta Airlines, nos Estados Unidos, e ela está correndo para receber dinheiro do governo americano. Nenhuma empresa do mundo tem caixa suficiente para o que estamos passando agora. Isso não quer dizer que não temos caixa por um mês ou dois meses. O que me preocupa é a incerteza. Estamos em uma situação que ninguém no mundo imaginaria.
Desde a semana passada, cresceu um movimento de empresários dizendo que o lockdown não pode ser horizontal e deve ser vertical. Os governos estaduais e o federal também divergem sobre isso. Qual é a sua posição?
Acho que temos que ter um plano. O lockdown horizontal, que temos agora, talvez seja muito efetivo. Mas por quanto tempo? Se é por duas semanas e voltar a produzir, a gente apoia. Por muito mais tempo do que isso será um desastre para a economia. Aí terá muito mais problemas depois. Nossa opinião é a de que temos de proteger as pessoas do grupo de risco, mas temos de ter um plano para sair disso.
Que plano?
Não sabemos que plano seria este. Temos que ter muito mais teste para saber quantas pessoas, de verdade, estão contaminadas. Temos também que ter melhores dados de cada pessoa que morreu. Qual idade? Eles já estavam doentes antes? O que podemos aprender com essas vítimas? Isso vai ajudar a planejar o nosso futuro. Temos que brigar para ter esses dados exatos.
Essa crise mudou o seu dia a dia?
Do início até agora foram cinco semanas. Tudo aconteceu muito rápido. Estamos enfrentando um vírus muito forte e temos de fazer todo o possível para ter certeza de que a Azul vai existir aqui em um ano, dois anos e nos próximos cem anos. Por isso, na semana passada, tivemos de sair de 75 cidades, estacionar a frota no chão, ter pessoas saindo de licença não remunerada. Isso tudo é proteção. Se eu continuar voando sem passageiro, vou gastar mais dinheiro ainda. Estamos fazendo isso para voltar, somos feitos para voar. Queremos voltar a voar “full” em julho.
Dos 150 aviões da companhia, quantos estão no chão?
Estamos com 130 aeronaves paradas.
Cada aeronave no chão representa uma perda de quanto para a empresa?
Em média, US$ 350 mil cada aeronave por mês. Se pegar o câmbio a R$ 5,20, são quase R$ 2 milhões por mês.
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