Do internet banking às carteiras digitais, a trilha do setor financeiro rumo às transações online vem sendo percorrida há anos e a Covid-19 só apertou esse passo. Porém, mesmo com essa transição acelerada, há um outro lado dessa moeda: para muitos brasileiros, o dinheiro físico ainda é essencial.
Fundada em 1982 e controlada pelo Itaú Unibanco, Bradesco, Santander, Banco do Brasil, Caixa e Banorte, a TecBan ocupa um bom espaço no roteiro das cédulas até as mãos de uma parcela considerável da população. Em 2019, 2,1 bilhões de saques e transações passaram pelos 23,7 mil caixas eletrônicos da empresa, distribuídos em 800 cidades do País.
Em um país com diferentes realidades, o digital e o físico ainda devem conviver por um bom tempo. Isso não significa que a TecBan, dona de uma receita de R$ 2,37 bilhões em 2019, tem uma posição cômoda. Ao contrário. Há uma agenda de mudanças no setor obrigando a empresa a sair da zona de conforto e ir além do modelo pelo qual se tornou conhecida.
“Sim, o mundo vai se transformando”, diz Luiz Stefani, diretor de autoatendimento da TecBan, ao NeoFeed. “E nós temos o desafio de evoluir e aproveitar as oportunidades que o mercado tem para uma empresa com as nossas características.”
Um dos elementos nesse contexto é o PIX, sistema de pagamentos instantâneos do Banco Central (BC). No leque de aplicações da plataforma, uma, em particular, surge como a principal ameaça para a Tecban: os saques no varejo, previstos para entrarem em vigor no primeiro semestre de 2021.
O modelo vai permitir saques na boca do caixa de supermercados, farmácias e afins. Os lojistas recebem o valor sacado automaticamente em conta. O formato surge como opção para reduzir os custos como segurança e transporte com a sangria, como é conhecida a prática dos varejistas de depositar dinheiro no banco, no fim de cada dia.
Ainda é muito cedo para prever o potencial que esse modelo carrega para canibalizar os saques nos ATMs. Mas o fato é que, em um cenário totalmente oposto ao seu negócio tradicional, a TecBan deve ter muita companhia nesse novo espaço.
“É interesse do BC quebrar esse traço de monopólio e trazer mais competição também nessa arena”, diz Bruno Diniz, fundador da Spiralem, consultoria do setor financeiro. “Hoje, a TecBan domina a conexão entre o dinheiro físico e digital. Mas essa ponte vai ser cada vez mais povoada por outros rivais.”
Stefani, por sua vez, usa o clichê de que a competição é sempre saudável. “Ela nos mantém alerta, acordados”, observa. Ele ressalta que, a princípio, a TecBan enxerga essa oferta como complementar à rede tradicional. “Nos países onde esse modelo mais vingou, ele representa 6% do volume de saques.”
Mesmo sob a perspectiva aparente de pouco risco ao seu negócio, a TecBan já se mexeu para marcar presença nessa fronteira. Em julho, a empresa lançou sua oferta para saques no varejo, solução que ela chegou a ter nesses moldes em 2006.
O serviço está disponível inicialmente para os clientes do Banco24Horas Saque Digital, outra solução recente no portfólio da companhia, que permite sacar dinheiro nos ATMs a partir da integração com aplicativos de empresas como o banco Safra e a PicPay, sem a necessidade de cartão.
No caso dos saques no varejo, o cliente, por meio de um QR Code, recebe a autorização do valor a ser sacado e recebe o montante, em espécie, do lojista, sem a cobrança de nenhuma taxa.
O varejista, por sua vez, tem o dinheiro depositado em sua conta e o direito a um percentual, não revelado, pela transação, que pode ser efetivada por meio de recursos como POS, Totem ou token.
Sob a ótica de complementaridade, a TecBan priorizou, nesse primeiro momento, a oferta em 15 cidades com acesso mais restrito a dinheiro e internet. O mapa inclui municípios como Piracuruca (PI), Mari (PB). Até o fim do ano, a meta é chegar a 100 mil pontos de venda, por meio de parcerias com grupos como a Drogaria Araújo, rede mineira de farmácias.
Ainda no plano do varejo, outra alternativa da companhia são os caixas eletrônicos recicladores. Esses terminais recebem os depósitos das sangrias e todo o processo restante fica a cargo da TecBan. Atualmente, 10% da base de ATMs do grupo tem esse perfil. O plano é chegar a 20% em 2021.
Concorrência
Dona de uma rede 1,7 mil caixas de autoatendimento recicladores, em 300 cidades, quem também está investindo nos saques no varejo é a gaúcha Saque e Pague. Em agosto, a empresa lançou um projeto-piloto, centrado na plataforma Mini ATM, uma espécie de POS, que viabiliza a retirada na boca do caixa.
Com testes iniciais em 20 postos de combustíveis e farmácias no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Espírito Santo e Sergipe, a projeção é chegar a mil pontos em operação nesse ano. “Temos potencial para chegar a 100 mil pontos em três anos”, diz Givanildo Luz, CEO da empresa.
Do investimento inicial à operação em si, ele destaca a redução dos custos no formato. “É outra escala, que permite massificar e ganhar capilaridade rapidamente. A cada ATM, eu consigo ativar 100 pontos nesse modelo”, afirma ele, que estima uma redução de cerca de 50% nos custos da transação.
Sob a visão de que o modelo só vai ganhar corpo com a adesão do varejo, a Saque e Pague também vai remunerar os lojistas com uma taxa de 50% da transação. E prevê, a partir de 2021, adicionar novos serviços financeiros nessa oferta, como seguros, microcrédito e até mesmo abertura de contas.
“O ponto físico, o funcionário e o dinheiro já estão lá”, observa Luz. “Se os testes mostrarem aderentes, essa é uma forma de viabilizar essas e outras ofertas num pacote muito mais acessível que o sistema tradicional.”
Mais conhecida por seus serviços de carro-forte, a americana Brink’s é mais uma empresa a apostar nesse filão. Mesmo sob o risco de a abordagem de saques no varejo canibalizar parte de seu negócio principal, a companhia decidiu estruturar uma oferta para marcar terreno nessa esfera.
“Esse movimento é de suma relevância para a nossa estratégia”, diz Marcelo Caio, diretor-presidente da Brink’s no Brasil. “Ele nos permite acompanhar uma evolução natural pela qual o mercado de pagamentos está passando.”
Batizada de Brink’s Pay, a plataforma da companhia para saques e também depósitos no varejo já está sendo ofertada em 60 mil estabelecimentos no País, por meio de parcerias com bancos, digitais ou convencionais, parceiros. Um dos acordos mais recentes foi fechado com a PicPay, o que vai conectar o serviço com mais de 2,6 mil municípios.
A solução roda como uma funcionalidade dos aplicativos das instituições parceiras. Com recursos de geolocalização, é possível identificar um estabelecimento credenciado para o saque, realizado via QR Code.
“Ainda é muito cedo para fazer afirmações categóricas. Muitas inovações ainda nem foram pensadas”, diz Gil Hipólito, diretor de novos negócios da Brink’s, sobre a nova agenda do setor, que inclui, além do PIX, frentes como o Open Banking. “O que podemos afirmar, com certeza, é que essa indústria não será mais a mesma.”
A competição à frente da TecBan também virá de outros elos da cadeia. O segmento de cartões também já está desenvolvendo projetos no escopo do varejo, sob a coordenação da Associação Brasileira das Empresas de Cartões de Crédito e Serviços (Abecs).
“Todo o ecossistema financeiro será forçado a evoluir rapidamente com as novas regulamentações”, afirma Luciano Sobral, diretor da consultoria Capco. “E o estabelecimento de parcerias será essencial para acelerar essa transformação.”
Parcerias
A aproximação com outras empresas é justamente um dos vetores da TecBan para se moldar a esse novo ambiente. E o Open Banking, outra força que deve trazer alterações profundas no setor, é um exemplo dessa abordagem.
A TecBan fechou uma parceria com a britânica Ozone, responsável pela plataforma usada na implantação do Open Banking no Reino Unido. O projeto naquele mercado é a maior referência do Banco Central para a estruturação da versão brasileira dessa nova regulamentação.
Entre outras questões, a associação com a Ozone envolve a preparação da TecBan para se consolidar como uma das fornecedoras da infraestrutura que irá conectar as diferentes aplicações do Open Banking no Brasil.
“Em um primeiro momento, nosso maior foco é consolidar a TecBan como um fornecedor a altura do que essa infraestrutura vai exigir”, diz Stefani. “Mas, no médio prazo, pensamos em atuar em todos os nichos do Open Banking.”
Em paralelo a esses planos, a TecBan está mantendo a média de aportes dos últimos dez anos, período no qual investiu cerca de R$ 3 bilhões. Para esse ano, o montante que está sendo aplicado é de aproximadamente R$ 310 milhões.
Parte dos recursos destinados desde 2019 visa a sustentar a atratividade e ampliar o leque no entorno da rede compartilhada de caixas eletrônicos, seu carro-chefe. Nessa direção, um dos principais movimentos foi o lançamento, no segundo semestre de 2019, do Hub Digital.
Na prática, a plataforma é uma alternativa para que fintechs, com um volume ainda pequeno de transações, possam oferecer os serviços de saques na rede do Banco24Horas aos seus clientes, a um custo operacional mais acessível.
O modelo é viabilizado por meio de instituições de maior porte conectadas a TecBan, que prestam todos os serviços para viabilizar os saques de um grupo de fintechs. Entre as empresas que atuam nesse modelo estão o Banco Original, a Money Cloud e a Celcoin.
Nos últimos dez anos, a TecBan investiu cerca de R$ 3 bilhões em sua operação. Para esse ano, o montante é de aproximadamente R$ 310 milhões
Mais de 15 fintechs já usam esse sistema e outras 108 estão em processo de integração. A relação inclui nomes como Oro Pay e Banco Arbi. A iniciativa surgiu na esteira dos questionamentos de startups do setor quanto à dificuldade de ter acesso a esses serviços, em virtude dos custos da operação.
“O dinheiro físico não vai deixar de existir do dia para a noite, mas esse não vai ser o mercado do futuro”, diz Diniz, da Spiralem. “Enquanto isso não acontece, a Tecban tem o desafio de exaurir seu modelo tradicional e, ao mesmo tempo, construir a transição para esse novo mundo.”
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