Em 2017, quando assumiu a Secretaria de Assistência Social da pequena Saltinho, no extremo oeste de Santa Catarina, Mateus Kuhn encontrou um desafio. Os processos eram baseados em papel e não havia sequer a informação de quantas famílias eram atendidas pela pasta.

O número estimado, “de cabeça”, variava entre 180 e 220. Hoje, no entanto, se sabe que o dado real supera 500 famílias. Por trás dessa descoberta está um software de gestão de assistência social, adotado a partir de 2018, a partir de uma assinatura mensal de R$ 440.

“Hoje, temos uma base de dados confiável, unificada e completa que nos permite focar os principais problemas e entregar um serviço melhor aos cidadãos”, diz Kuhn. “Estamos usando a tecnologia não só como ferramenta de controle, mas de planejamento de longo prazo.”

A responsável pelo software em questão é a empresa mineira Gesuas. Fundada em 2007, ela é apenas uma entre tantas startups que começam a ultrapassar uma fronteira até pouco tempo inexplorada: a oferta de produtos e serviços para o setor público.

“Quando começamos, cansei de ser chamado de louco por outros empreendedores”, diz Igor Guadalupe, CEO e cofundador da Gesuas. “Mas só o governo pode dar a escala e o impacto social que identificávamos na nossa ferramenta.”

Hoje, a Gesuas tem 90 prefeituras como clientes, em 12 Estados. Seu software cobre uma base de 3 milhões de pessoas e cerca de 1 milhão de famílias cadastradas.

Além do boca a boca entre prefeituras, parte do ganho de escala da Gesuas veio com a participação na última edição do programa de aceleração do BrazilLAB, hub de inovação voltado à conexão de startups com o setor público.

No processo, a startup foi a escolhida para receber um aporte de valor ainda não definido. “Pudemos conhecer outros empreendedores, mentores e gestores dessa área”, diz Guadalupe. “Levaríamos quatro anos para ter o acesso que conquistamos em quatro meses.”

Aceleração

Fundado em 2016, o BrazilLAB já recebeu mais de 650 inscrições em seus três ciclos de aceleração. No total, 55 govtechs passaram por esse processo.

Letícia Piccolotto, fundadora do BrazilLAB

“Há uma demanda enorme que pode ser atendida por essas startups”, diz Letícia Piccolotto, fundadora do BrazilLAB. “O Estado está quebrado e precisa pensar em saídas criativas para os seus desafios.”

Ela explica que o projeto nasceu da necessidade de aproximar esses dois elos. “A tecnologia permite que os governos deem saltos significativos sobre problemas do século 19 e se conectem com as possibilidades do século 21”, afirma Letícia. “E o Brasil precisa escolher se vai ser protagonista ou expectador nesse contexto.”

Entidade sem fins lucrativos, o hub é financiado por oito patrocinadores, entre eles o Bank of America e o Itaú. E acaba de lançar seu quarto ciclo de aceleração, que terá quatro temas: cidades inteligentes, mobilidade urbana, eficiência na gestão pública e educação do século 21.

O programa inclui um aporte entre R$ 50 mil a R$ 250 mil para uma das startups, e um intercâmbio no Vale do Silício, além do contato com gestores públicos e investidores.

Os empreendedores também têm acesso a uma rede de 60 mentores voluntários, que inclui nomes como Alexandre Schneider, ex-Secretário de Educação do Estado de São Paulo, e Ana Maria Diniz, presidente do conselho do Instituto Península.

A Gesuas não é a única startup que passou pelo programa e já está dando resultados. Outro exemplo é a pernambucana Fábrica de Negócio. Com recursos de inteligência artificial, a empresa desenvolveu um software de auditoria de folha de pagamento para órgãos públicos.

Um dos casos de aplicação da ferramenta é a prefeitura de Recife, onde esse processo, antes da adoção, era feito por amostragem. Um dos desafios era identificar inconsistências, como pagamentos em duplicidade. “Com a solução, em um clique, eles cobrem toda a base e já estão gerando uma economia mensal de R$ 2 milhões”, diz Letícia.

A MobiEduca.Me é mais um exemplo. A empresa desenvolveu uma plataforma digital de acompanhamento escolar que já é adotada em 400 escolas públicas municipais e estaduais do Piauí. Entre outros recursos, o software monitora a presença dos alunos e envia alerta para os pais no caso de alguma ocorrência.

Segundo dados divulgados pela Secretária de Educação do Estado do Piauí, a adoção do sistema trouxe uma redução de 13% na evasão escolar e de 76% no controle da frequência nos colégios cobertos.

Certificação

O passo mais recente do BrazilLAB foi a criação do Selo GovTech, que certifica as startups aptas a trabalharem com o governo. A iniciativa também inclui um marketplace, no qual os gestores públicos conseguem acessar e conhecer os projetos de cada empresa. Até o momento, são 170 companhias cadastradas, sendo 27 certificadas.

Tela do aplicativo da Zul Digital

A paulistana Zul Digital é uma dessas empresas. A novata investiu no GovTech de olho em novos projetos ligados à área de cidades inteligentes. A companhia foi criada em 2017, a partir de um chamamento público da prefeitura de São Paulo para aplicativos de Zona Azul.

Na prática, as empresas que atuam nesse segmento – a Zul não é o único aplicativo cadastrado na cidade – compram lotes de créditos de estacionamento, em um valor abaixo do que aquele cobrado dos usuários. E são remunerados de acordo com a frequência e o uso dos consumidores.

No último balanço divulgado, a Companhia de Engenharia e Tráfego de São Paulo (CET) reportou alguns benefícios do projeto. O principal deles foi o aumento da arrecadação. Em 2017, a receita com o serviço foi de R$ 88,9 milhões, ante R$ 54,6 milhões em 2016.

“Há uma estimativa de que, ao menos 90% das fraudes deixaram de ocorrer”, diz André Brunetta, CEO e cofundador da Zul Digital, que destaca outras vantagens. “Antes, havia muitos custos de impressão e de distribuição dos cartões em papel.”

A Zul também já atua em Fortaleza, Salvador e Belo Horizonte. E enxerga uma barreira para que sua expansão seja mais acelerada: a burocracia para a contratação de produtos e serviços no setor público, um desafio comum a todos que decidem enveredar por esse caminho.

“O aspecto regulatório é essencial, necessário e positivo”, diz Brunetta. “Mas, em muitos casos, ele pode limitar a inovação.”

Desafios

O arcabouço legal é, de fato, um desafio para que esse ecossistema ganhe escala. Ele inclui, por exemplo, a Lei 8.666, que rege licitações e contratos do setor público. E também a Lei da Inovação, cuja revisão, em 2016, trouxe alguns caminhos para tornar esses processos mais ágeis.

Membros do BrazilLAB e da Fundação Brava

Entre eles, a dispensa de licitações, desde que atendidas determinadas condições, como a associação entre universidades e empresas. “Mas a lei ainda não pegou, porque ela ainda não foi, de fato, regulada”, diz Letícia, do BrazilLAB.

Fundada em 2012, a Movva é um exemplo dos desafios impostos pelas particularidades de se relacionar com o setor público. A startup paulistana desenvolveu uma plataforma baseada em economia comportamental e inteligência artificial que envia dicas e alertas semanais para os pais de alunos da escola pública.

“Muitos gestores públicos estão propensos a adotar novas ferramentas”, afirma Rafael Vivolo, CEO e cofundador da Movva. “Mas o fato de terem que responder como pessoa física caso ocorra qualquer problema inibe os projetos.”

Os conteúdos da Movva são enviados por SMS ou serviços como WhatsApp, O objetivo é fazer com que eles tenham participação ativa na educação de seus filhos.

Depois de um primeiro piloto em 2015, que abrangeu escolas públicas de São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza, a empresa fechou um novo projeto, em 2016.

Com duração de seis meses, a iniciativa compreendeu 19,3 mil pais de alunos dos nonos anos da rede estadual de São Paulo. E foi financiada pela Universidade de Stanford e por um banco, de nome não revelado.

Entre os resultados obtidos, a ferramenta aumentou o fluxo em sala de aula em 15%, reduziu a reprovação em 33% e ampliou em um quarto a proficiência em matemática. Por questões burocráticas, no entanto, sua adoção se restringiu ao projeto-piloto.

“Nosso DNA é trabalhar e vender diretamente ao governo, mas hoje, por essas barreiras, estamos sendo financiados pela iniciativa privada”, diz Vivolo. Com o apoio de entidades como o Instituto Natura e a Jacobs Foundation, a Movva tem cerca de 150 mil usuários ativos, no Brasil e em países como Costa do Marfim.

E, além do financiamento privado, desenvolveu outra plataforma de prevenção de inadimplência para reforçar o caixa da operação. “É uma forma de garantir receita enquanto não destravamos a venda direta ao governo”, afirma o empreendedor.

O ciclo de vendas mais longo é, de fato, um desafio para o ganho de escala dessas startups. Da mesma forma, outra barreira a ser vencida é o número ainda baixo de investidores dispostos a fazer aportes nas novatas que trabalham com o setor.

“Essa morosidade e os riscos de se trabalhar com o Estado ainda desperta desconfiança nos fundos”, afirma Guadalupe, da Geusa. Mas a própria empresa é um exemplo de que é possível superar esses obstáculos.

A startup chegou a ter que desenvolver sistemas para laboratórios, supermercados e o agronegócio para sustentar a operação. “Mas hoje temos uma operação saudável e tocamos o negócio com os nossos próprios recursos.”

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