As decisões de política monetária no Brasil e nos Estados Unidos marcaram a semana, com o Federal Reserve reiniciando seu ciclo de cortes, enquanto o Comitê de Política Monetária (Copom) manteve o juro no patamar mais alto desde 2006, em 15%.
Mas, mais do que as decisões em si, Ana Paula Vescovi, economista-chefe do Santander Brasil e ex-secretária do Tesouro Nacional, chama a atenção para as sinalizações distintas que vêm sendo emitidas por ambos os bancos centrais.
“Enquanto o nosso Banco Central está ganhando credibilidade, com ações que estão levando ao aumento da percepção de independência, lá fora há a crescente preocupação dos mercados com a autonomia do Federal Reserve”, diz ela, em entrevista ao NeoFeed.
A economista aponta que esse tem sido um dos fatores que têm pressionado a desvalorização do dólar, assim como as políticas econômicas adotadas por Donald Trump e a reversão de parte do fluxo que foi para os Estados Unidos sob a tese do "excepcionalismo americano".
“É uma economia extremamente relevante no cenário internacional. Mas ela se tornou menos ‘excepcional’, conforme avançaram medidas como a imposição de tarifas, dentro de um movimento maior de fragmentação do comércio internacional”, afirma Vescovi.
O momento, segundo ela, pode representar uma grande oportunidade para o Brasil, que está bem posicionado diante das mudanças em curso na geopolítica e na economia global. A economista, no entanto, pontua que o Brasil precisa fazer a lição de casa para aproveitar essa janela.
“Nossos próprios problemas, que sabemos ser relevantes, estão se transformando cada vez mais em grandes oportunidades para o País. Cabe a nós resolver a questão fiscal, a questão do crescimento e da produtividade, bem como os desafios relacionados ao crime organizado e à corrupção, que são preocupações recorrentes”, diz.
Parte significativa dessa solução, segundo ela, passa pelas eleições do ano que vem. Nessa disputa, ela afirma que um ponto-chave será entender as propostas para o ajuste fiscal dos principais candidatos.
Vescovi, inclusive, acredita que a qualidade dessa discussão poderá ter impactos diretos sobre o tão esperado ciclo de queda de juros do Banco Central - ciclo que ela projeta começar em janeiro de 2026.
Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista com Ana Paula Vescovi, economista-chefe do Santander.
A manutenção da Selic em 15%, contrariando o desejo de redução do governo, reforça a independência da autoridade monetária?
O que vejo, ao longo do tempo, é um esforço para consolidar essa independência. O Banco Central tem aprimorado tanto a comunicação como o processo decisório. Há uma clara intenção de tomar decisões por consenso, e essa comunicação reflete uma coesão interna. Também há um avanço no uso de dados e modelos.
São bons sinais para o mercado?
Tudo isso contribui para aumentar a credibilidade junto aos mercados. Ainda temos uma situação em que as expectativas seguem desancoradas, com a inflação acima da meta. Recuperar essa credibilidade é fundamental. À medida que o Banco Central ganha consistência a cada reunião e define melhor os contornos da sua independência, a política monetária tende a ganhar potência.
O Copom está no caminho certo?
Está no caminho certo.
Muito se especula no mercado se o corte de juros virá em dezembro ou em janeiro. Tem chance de não ser nem em dezembro e nem em janeiro?
Tem chance, sim. O Banco Central deixou claro que está dependente dos dados.
O que deve influenciar essa balança?
Por um lado, tivemos uma desinflação relevante no setor de bens, muito influenciada pelo desempenho da taxa de câmbio, especialmente do dólar, que se valorizou nesse período. Por outro, o mercado de trabalho segue em níveis historicamente baixos de desemprego, e isso tem impacto direto sobre os preços de serviços. Essa é justamente a parte mais difícil de desinflacionar.
No seu cenário-base, corta quando?
A partir de janeiro.
Como mencionou, o dólar tem caído bem. É puramente um efeito da queda de juros nos Estados Unidos?
Acho que é um reflexo da política econômica nos Estados Unidos, mas também há um componente de ajuste. O dólar havia se valorizado excessivamente com a tese do “excepcionalismo americano”.
"[A economia americana] se tornou menos “excepcional”, conforme avançaram medidas como a imposição de tarifas, dentro de um movimento maior de fragmentação do comércio internacional"
A tese perdeu força?
É claro que a economia americana é muito robusta — vemos isso no grau de inovação, no desempenho da bolsa, na criação de novos negócios. É uma economia extremamente relevante no cenário internacional. Mas ela se tornou menos “excepcional”, conforme avançaram medidas como a imposição de tarifas, dentro de um movimento maior de fragmentação do comércio internacional. Também pesa o impacto das ações do governo sobre o déficit fiscal, que ainda não tem uma solução clara. Ao contrário, há uma tendência de aumento da dívida pública nos Estados Unidos.
Se o Copom está no caminho certo para ganhar credibilidade, o Fed está na direção oposta?
Enquanto o nosso Banco Central está ganhando credibilidade, com ações que estão levando ao aumento da percepção de independência, lá fora há a crescente preocupação dos mercados com a autonomia do Federal Reserve. Há atenção em relação ao processo de troca de membros, que está previsto para ocorrer, e como isso pode afetar o processo decisório. A comunicação mais recente indicou uma preocupação maior com a atividade econômica, em linha com o duplo mandato do Fed. Então, há um quadro geral de preocupações com a política econômica americana — em especial com tarifas, política monetária e fiscal —, sendo a última também motivo de atenção, devido à trajetória da dívida pública.
O Fed revisou para cima as projeções de crescimento e também as de inflação. Por que, então, viram agora mais espaço para cortar? Houve um componente político na decisão?
Essa desaceleração pode estar se mostrando um pouco mais acentuada, especialmente após a revisão dos dados do mercado de trabalho nos Estados Unidos, que surpreendeu a todos. Foi uma revisão muito relevante. Esses dados talvez tenham servido como contraponto às expectativas tanto dos membros do Fed quanto do mercado em relação ao ritmo da atividade econômica. Ou seja, a desaceleração pode ser mais intensa do que se esperava.
O dólar perdendo força, o Fed sendo questionado e a China avançando em inteligência artificial, já dizendo que não precisa mais dos chips da Nvidia. Os Estados Unidos têm perdido protagonismo?
Alguns blocos ou países têm demonstrado uma preocupação crescente com a autonomia em relação à dependência produtiva. Ou seja, há um movimento para garantir mais controle sobre determinadas cadeias produtivas. É visível uma busca por maior autonomia, tanto por parte dos Estados Unidos quanto da China, do leste asiático e também do bloco europeu, especialmente em cadeias relacionadas à inteligência artificial e tecnologia. É um tema muito complexo, que vai além da economia e entra no campo da geopolítica. Vamos ter que aprender a compreender melhor esses movimentos de soberania e integração dentro dessa nova dinâmica geopolítica daqui para frente.
E como fica o Brasil nesse cabo de guerra?
Vejo o Brasil muito bem posicionado. Primeiro, porque temos vantagens comparativas claras. Algumas das cadeias que mencionei, como alimentos e energia, nos conectam de forma mais neutra aos blocos regionais que discutimos anteriormente. Acredito que não há outro país no mundo com um posicionamento tão favorável quanto o do Brasil. Mas, reforço, isso depende de nós. Não é algo que vamos colher automaticamente. Temos oportunidade de atrair mais investimentos externos, devido a essa rotação de ativos provocada pelas mudanças geopolíticas e de política econômica em curso no mundo. Temos condições de aproveitar bem essa janela. Mas, mais uma vez, tudo depende do dever de casa que fizermos internamente.
"Nossos próprios problemas, que sabemos ser relevantes, estão se transformando cada vez mais em grandes oportunidades para o País"
Como aproveitar essa oportunidade?
Nossos próprios problemas, que sabemos ser relevantes, estão se transformando cada vez mais em grandes oportunidades para o País. Cabe a nós resolver a questão fiscal, a questão do crescimento e da produtividade, bem como os desafios relacionados ao crime organizado e à corrupção, que são preocupações recorrentes. Se conseguirmos uma maior convergência social em torno dessa agenda — que, de fato, interessa ao país, à população, à qualidade de vida e ao bem-estar dos brasileiros —, poderemos superar a armadilha da renda média.
O quanto dessa resolução dependerá do resultado das eleições do ano que vem?
O resultado depende bastante da qualidade do debate eleitoral e do programa que surgir a partir dele. Acredito que estamos diante de uma grande oportunidade de seguir uma trilha construtiva para o País. Todo mundo fala em fazer o ajuste fiscal. Já se entendeu a importância de olhar para as contas públicas. Mas estamos travados nesse tema há mais de dez anos.
É um debate sem fim.
Precisamos retomar o equilíbrio das contas públicas, justamente para poder superar essa pauta e avançar em outras questões que também são fundamentais para a sociedade. Enquanto isso não for resolvido, continuaremos presos a esse debate. E os demais temas ficam comprometidos.
A expectativa de troca de governo tem ofuscado o problema fiscal nos últimos meses, considerando o atual patamar do dólar e da nossa bolsa?
Mais do que a expectativa, eu acho que o componente do dólar — uma desvalorização próxima de 15% — combinado com a ação contundente da política monetária, são fatores que têm nos ajudado a ganhar tempo. Essas duas circunstâncias vieram a nosso favor. Mas precisamos saber usá-las bem.
No mercado, parte dos gestores tem a expectativa de que os juros vão cair mais que o esperado pelos economistas. É possível?
Sem uma pauta concreta que enfrente a questão fiscal — que é o principal fator para reduzir o custo de capital no Brasil —, o Banco Central terá pouca margem de manobra. Apesar disso, sou bastante esperançosa. Acredito que o mais relevante para os mercados deveria ser a percepção de que é possível o Brasil operar com um juro neutro mais baixo. Isso impacta diretamente o custo de capital.
Dá para dizer que o próximo ciclo de queda de juros do Banco Central dependerá do debate sobre a questão fiscal nas eleições?
Sim, mas dentro de um contexto internacional, que também importa bastante. O que vimos neste ano é que esses dois fatores — o cenário externo e o doméstico —, quando combinados, são determinantes para entender os ciclos de política monetária. Então, tanto o tamanho quanto a duração desse próximo ciclo de cortes de juros ainda dependem de informações que virão — seja do ambiente internacional, seja das definições internas, principalmente no que diz respeito à condução da política fiscal e aos ajustes que serão necessários.