O presidente Luiz Inácio Lula da Silva não escolheu à toa os vizinhos Argentina e Uruguai como destino de sua primeira viagem internacional desde a posse, em 1º de janeiro.

Ao desembarcar em Buenos Aires na segunda-feira, 23 de janeiro, Lula levou na bagagem duas prioridades: a primeira é retomar o protagonismo do Mercosul na política comercial brasileira e, por tabela, reforçar o peso político e econômico brasileiro na região.

No Uruguai, segunda escala da viagem, na quarta-feira, 25 de janeiro, a missão é mais complexa: demover o país vizinho de assinar um acordo bilateral de livre-comércio com a China, o que poderia implodir as regras de comércio do Mercosul.

Nesta quarta-feira, 25 de janeiro, Lula vai se reunir com o presidente do Uruguai, Luis Lacalle Pou, com a missão de demovê-lo de assinar um acordo bilateral com a China.

A rigor, a assinatura de um acordo de livre-comércio entre Uruguai e China pode causar um impacto nas indústrias argentina e brasileira capaz de inviabilizar o Mercosul.

O economista Acilio Marinello, coordenador de MBA em Digital banking da Trevisan Escola de Negócios, observa que, caso o tratado seja firmado, também vai ser difícil os dois parceiros vizinhos conseguirem importar a produção de carne do Uruguai, que deve ir para a China.

“Qual o poder de barganha do Brasil e da Argentina para discutir tarifa com a China?”, questiona. Segundo ele, a tendência é todos buscarem acordos bilaterais com os chineses, inviabilizando o Mercosul.

O chanceler brasileiro Mauro Vieira resumiu o que está em jogo. “Se você negociar fora da Tarifa Externa Comum (TCE) do bloco, destrói a tarifa” advertiu Vieira. “E destruir o Mercosul não interessa a ninguém.”

Lacalle Pou discorda e afirmou aos jornalistas presentes na Cúpula da Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) que há muito protecionismo no Mercosul e os líderes regionais deveriam parar de "reclamar para dentro" e pensar na integração com o mundo.

Escanteado pela gestão anterior de Jair Bolsonaro - seja pelos efeitos da pandemia na pauta de exportações ou por divergências políticas com o governo argentino -, o bloco comercial sul-americano, que também inclui Uruguai e Paraguai como países-membros, na verdade já vinha experimentando um processo de irrelevância econômica para o Brasil.

O Mercosul chegou a responder por dois terços das exportações brasileiras para o continente no início dos anos 2000. Foi caindo na década passada e, depois da pandemia, passou a representar menos da metade das nossas exportações para a região.

Em termos globais, a irrelevância do bloco salta aos olhos: o comércio exterior do Brasil para o Mercosul hoje gira em torno de 6% (tanto de importações quanto de exportações).

“Num momento em que os países de várias regiões do planeta repensam a viabilidade das cadeias de suprimentos globais pré-pandemia, buscando aumentar as trocas comerciais com nações vizinhas, a estratégia do atual governo faz sentido”, afirma Marinello, da Trevisan Escola de Negócios.

Ele ressalta que a retomada do Mercosul na pauta de comércio exterior brasileira se encaixa na necessidade de o Brasil assumir uma liderança econômica do bloco.

“Num cenário de desglobalização, o Mercosul tem a vantagem da proximidade geográfica, que reduz custos de transporte, fortalece a eficiência e amplia a segurança econômica: ao deixar de depender apenas das exportações para Ásia e Europa, por exemplo, o país ganha barganha para negociar seus produtos”, acrescenta.

“Mesmo sem discutir um eventual viés político, o BNDES deveria focar em investimentos de infraestrutura no nosso país, temos carência na área de recuperação de rodovias e muita demanda nas áreas de energia limpa”, diz o economista Acilio Marinello, da Trevisan Escola de Negócios

No caso da indústria nacional – que concentra 85% das exportações brasileiras para o Mercosul –, os ganhos são relevantes. “Empresas brasileiras estão perdendo espaço para os chineses; portanto, o foco é recuperar esse espaço perdido no nosso principal mercado, que é a América do Sul”, diz Marinello.

Moeda única

Para driblar a assimetria entre os países do bloco – a economia argentina representa 30% da brasileira, enquanto a do Uruguai equivale a 12% da economia da Argentina e a do Paraguai, um pouco menor que a uruguaia –, os governos brasileiro e argentino começaram a discutir a adoção de uma moeda comum virtual, para facilitar transações comerciais, sem a necessidade de recorrer ao dólar.

Essa controversa discussão da moeda única no âmbito do Mercosul é antiga. Num artigo publicado em 2008, o então economista Paulo Guedes já havia defendido criação de uma moeda única na América Latina, que se chamaria “peso-real”.

Segundo Guedes, a adoção “peso-real” deflagraria um “ciclo de reformas para assegurar a convergência de políticas tributárias, trabalhistas, previdenciárias, e assim por diante” na região.

Guedes voltou a recuperar a proposta, que não evoluiu, quando foi ministro da Economia do governo Bolsonaro. A fragilidade da economia Argentina é um dos principais entraves.

Ao desembarcar em Buenos Aires, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, deixou claro que o que está sendo discutido agora é diferente.

“Não se trata da ideia do ex-ministro Guedes de uma moeda única, se trata de avançarmos nos instrumentos previstos e que não funcionaram a contento, como a possibilidade de pagamento em moeda local pelos dois países e o Convênio de Pagamentos e Créditos Recíprocos (CCR), mecanismo de compensação entre bancos centrais”, disse Haddad.

O economista Paulo Feldmann, professor da FIA Business School, afirma que Mercosul é um dos blocos mais fracos do mundo, em termos de participação do PIB dos seus países-membros. “O que está sendo proposto, a rigor, nem é uma moeda comum, e sim uma tabela de conversão para transações comerciais, semelhante à URV, criada na transição do cruzeiro para o real no Brasil”, diz Feldmann.

Segundo ele, como os valores de referência nas negociações comerciais dispensam o dólar, a tendência é a Argentina aumentar o fluxo comercial no bloco.

Marinello, da Trevisan Escola de Negócios, diz que o maior empecilho é o prazo para essa moeda comum sair do papel. “Embora tecnicamente viável e factível de ser adotada, deve levar entre três e cinco anos para criar a paridade e estabelecer os gatilhos de controle”, afirma.

A possibilidade manifestada por Haddad de oferecer o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) para financiar empresas brasileiras na construção do gasoduto de Vaca Muerta, na Argentina, causou polêmica.

Marinello diz que após os percalços das gestões petistas anteriores, que optaram por essa estratégia e levaram calotes dos governos da Venezuela e de Cuba, seria necessário estabelecer uma série de proteções jurídicas.

“Mesmo sem discutir um eventual viés político, o BNDES deveria focar em investimentos de infraestrutura no nosso país, temos carência na área de recuperação de rodovias e muita demanda nas áreas de energia limpa”, afirma.