A ameaça do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, de impor tarifas adicionais de 50% à China – elevando o total para inacreditáveis 104% -, fez mais do que jogar gasolina na nova frente da guerra comercial entre os dois países.
O ultimato para que o governo chinês recue de suas tarifas retaliatórias de 34% sobre as exportações dos EUA, anunciadas na semana passada, acendeu um sinal de alerta entre economistas e agentes do mercado financeiro americano.
Inicialmente, a péssima repercussão nos mercados globais decorrentes do pacotaço de tarifas de Trump já havia emitido alertas de uma iminente queda na atividade econômica junto com aumento de inflação nos EUA.
A possibilidade ganhou peso a partir da lógica de que o aumento de tarifas de importação acabaria respigando nos preços dos produtos no país, sejam os importados ou os produzidos nos EUA com insumos vindos de fora.
Mas ganhou escala após o cálculo desse muro tarifário nos EUA erguido por Trump realizado pela Trade Partnership Worldwide, consultoria que analisa os efeitos econômicos de políticas e legislação de um país: US$ 1 trilhão por ano.
O efeito econômico interno inverso das tarifas, ao estilo bumerangue, também começou a ficar claro com a penalização de empresas americanas com produção sediada em países da Ásia, como a Apple e Nike.
Além de verem suas ações despencarem nos últimos dias, essas e outras marcas ainda enfrentam o risco de seus produtos serem sobretaxados acima de 30% ao entrarem nos EUA.
O derretimento do mercado financeiro americano pelo terceiro dia útil consecutivo, com mais de US$ 5 trilhões em valores de ações do S&P 500 virando pó em menos de uma semana, aliado à intransigência de Trump com a China, consolidou a expectativa dos agentes em relação à economia americana.
A inflação elevada já virou uma ameaça menor. Agora, o temor é que uma recessão, ainda que leve, chegue antes e jogue por terra dois anos seguidos de crescimento robusto do PIB dos EUA, em 2023 (2,9%) e em 2024 (2,8%).
Analistas da empresa de consultoria Evercore reduziram sua estimativa de crescimento do PIB dos EUA para 2025 para 1% e aumentaram a probabilidade de recessão este ano para 40%. Os economistas do J.P. Morgan agora preveem uma recessão, ainda que branda, de menos 0,3%, mas com a taxa de desemprego subindo de 4,2% em março para 5,3%.
Outros sinais começaram a pipocar nos últimos dias, com a maior liquidação no mercado de títulos de alto risco dos EUA desde 2020, o ano da pandemia.
O prêmio que os investidores exigem para manter dívida corporativa de alto risco aumentou um ponto percentual inteiro para 4,5% no fim da semana passada, de acordo com o índice ICE BofA, do Bank of America - sinal do medo que as tarifas e suas consequências possam desencadear inadimplências.
O setor de commodities também vem refletindo essa insegurança. O cobre, um indicador de crescimento econômico por ser amplamente utilizado na indústria, fechou em queda de mais de 7% na sexta-feira. O preço do petróleo também tem caído.
Outro sinal foi a queda do dólar. Normalmente, tempos de incerteza levam a uma fuga para ativos em dólar americano. Desta vez, o dólar caiu em relação ao euro, ao iene e à libra esterlina.
O dólar se recuperou um pouco a partir de sexta, mas a oscilação para baixo reforçou a falta de confiança na economia americana, que antes das tarifas tinha como maior preocupação o mercado de trabalho aquecido e o consumo a todo vapor, que impediam a queda de juros.
Fator China
O acirramento da guerra comercial entre EUA e China, se todas as ameaças forem cumpridas, promete causar um estrago de grandes proporções nas duas economias e justifica a gritaria de pesos-pesados de Wall Street contra as tarifas.
A nova ameaça de Trump, somada aos planos tarifários existentes, colocaria a taxa tarifária dos EUA para a China em 104%, inviabilizando o comércio bilateral. Essa possibilidade é a que dá mais força para uma recessão nos EUA.
Isso porque a China é a segunda maior fonte de importações dos Estados Unidos, depois do México, e o terceiro maior mercado americano de exportação, depois do Canadá e do México.
Os EUA têm um déficit comercial maior com a China do que com qualquer outro país, chegando a US$ 295,4 bilhões no ano passado.
Os EUA compraram US$ 426,9 bilhões em smartphones, móveis, brinquedos e uma série de produtos de alto valor agregado dos chineses. E venderam US$ 147,8 bilhões em semicondutores, combustíveis fósseis, produtos agrícolas e outros produtos americanos no ano passado.
Além das trocas diretas entre os dois países, há um comércio triangular que começou a crescer com a guerra tarifária imposta por Trump em 2018, em seu primeiro mandato.
Para driblar a tarifação, empresas chinesas e as americanas sediadas no país transferiram na época fábricas de vários produtos para países como Vietnã, Camboja, Tailândia e Taiwan, para fugir das sobretaxas americanas.
O cerco de Trump a esses países ao anunciar o tarifaço, cobrando tarifas de 46% para o Vietnã e 36% para Taiwan, por exemplo, prejudicou muitas empresas americanas – que para vender seus produtos em casa, precisam se submeter às maiores taxas comerciais de importação dos EUA em um século.
Os custos estimados das novas tarifas que as empresas dos EUA terão de desembolsar estão entre US$ 1 bilhão e US$ 2 bilhões por dia, no cálculo da Trade Partnership Worldwide.
A Apple é um exemplo dos prejuízos acumulados com as novas tarifas americanas. A forte dependência da China para fabricação do iPhone – produto que compõe cerca de 50% de sua receita - assustou investidores, levando a um declínio de 20% em suas ações, seu pior desempenho de três dias em quase 25 anos.
Uma estimativa feita antes do anúncio desta segunda-feira de Trump sugere que o preço de um iPhone 16 Pro Max nos EUA pode saltar de US$ 1.599 para US$ 2.300, se todos os custos tarifários forem repassados aos consumidores.
“As empresas dos EUA parecem propensas a sofrer mais do que as empresas e consumidores nos países que podem retaliar”, escreveu Niels Rasmussen, analista-chefe da BIMCO, organização privada formada por operadores que atuam no ramo do transporte marítimo internacional, em nota a clientes.
Exportações digitais
A ironia é que gigantes da tecnologia dos EUA, agora em risco de serem alvos de retaliação tarifária - como Meta, Alphabet, IBM, Amazon e Oracle, entre outras, além da Apple - têm tido um grande superávit comercial com o resto do mundo, de US$ 705 bilhões, em vez de um déficit.
Smartphones, softwares, hardwares e outros itens compõem uma parte da produção das gigantes tech, mas a maior fatia está nos serviços digitais.
Em 2024, os Estados Unidos exportaram cerca de US$ 2 trilhões em bens físicos e importaram cerca de US$ 3,27 trilhões. Pelo valor de face, isso se traduziria em um déficit comercial na faixa de US$ 1,2 trilhão.
Mas já faz algum tempo que os EUA também exportam por meio de roteadores: toda vez que um estrangeiro transmite um filme na Netflix ou compra um anúncio no Facebook, os EUA estão exportando.
“Estimamos que os EUA desfrutem de um superávit comercial de pelo menos US$ 600 bilhões em produtos digitais”, afirma o economista francês Cesar Hidalgo, da Toulouse School of Economics, na França. “Isso é comparável ao total de exportações francesas, que é o sétimo maior exportador do mundo.”
Em 2024, as exportações dos EUA em publicidade digital e computação em nuvem representam cerca de US$ 260 bilhões e US$ 184 bilhões, respectivamente – mais do que as exportações americanas em petróleo bruto ou refinado, os maiores produtos de exportação do país.
De acordo com o economista, é provável que os líderes mundiais olhem para a tecnologia dos EUA como arma de retaliação. “Se você está em uma guerra com a Rússia, você mira gás e petróleo, se quiser pressionar a Alemanha, seu alvo são os carros”, diz Hidalgo. “No caso dos EUA, o grande setor de exportação é a web.”
Outro acadêmico, Jason Miller – professor de logística na Michigan State University –, também espera uma retaliação estrangeira massiva voltada para a indústria aeroespacial, maquinário, alimentos, bebidas, metais primários, equipamentos elétricos, computadores, produtos eletrônicos e energia dos EUA.
“A magnitude dessas tarifas, sua cobertura global e o fato de que afetam muitos tipos de bens para os quais os EUA têm capacidade de fabricação doméstica limitada significa que elas inevitavelmente causarão inflação no país”, disse Miller.
Se o efeito vier por inflação alta seguida de recessão, a mistura dos dois – o que significa uma estagflação, por ora descartada – ou apenas uma desaceleração da economia, ainda é cedo para prever.
O secretário do Tesouro, Scott Bessent, porém, prefere ver o copo meio cheio. Em entrevista à TV americana, reagiu com misto de ironia e negacionismo ao ser questionado sobre a queda do mercado de ações.
“Sabe o que mais caiu? Os preços do petróleo caíram quase 15% em dois dias, o que impacta os trabalhadores americanos muito mais do que o mercado de ações", afirmou Bessent. “As taxas de juros atingiram o menor nível do ano, então, espero que os pedidos de hipoteca aumentem.”