A Argentina atravessa um período de extremo risco, que amarra uma crise econômica aguda com a proximidade das eleições presidenciais, marcadas para outubro.
Nesse cenário, entre propostas mirabolantes para conter a hiperinflação de 104% ao ano e reservas cambiais negativas de US$ 1 bilhão do banco central argentino, um candidato presidencial com boas chances de vencer, o deputado Javier Milei, da coalizão de extrema direita Libertad Avanza, está prometendo acabar com o problema da inflação com um programa de dolarização completa da economia do país.
"Trará mais soluções que problemas, mas, principalmente, eliminará a inflação”, afirmou Milei em um evento recente. Estrela em ascensão na política argentina, o candidato direitista já vinha chamando a atenção com propostas polêmicas, como a legalização da venda de órgãos humanos, mas passou a bater na tecla da dolarização à medida que a crise foi se agravando.
Nesta sexta-feira, 12 de maio, o Instituto de Censos e Estatísticas (Indec) da Argentina anunciou a inflação de abril, de 7,5%, o que permite prever que o ano feche com índice inflacionário de 130%.
A ideia de dolarizar a economia não é nova, o que explica a rejeição de 60% dos argentinos e a desconfiança de boa parte dos economistas do país à proposta. Adotada em 1990 pelo então presidente Carlos Menem, quando a inflação atingiu 2.314% ao ano, a dolarização teve início com um plano de conversibilidade que fixou o dólar em 10.000 austrais, a moeda argentina da época. Em 1992, o austral tornou-se um peso conversível, atrelado ao valor nominal do dólar americano.
A estratégia de sustentar o regime de conversibilidade com um aumento da dívida externa e a privatização das empresas estatais funcionou até 1997. Aos poucos, a falta de reformas estruturais foi corroendo os avanços, gerando uma recessão que culminou em dezembro de 2001 com o “corralito” – uma das crises econômicas mais graves da história do país, que até hoje ainda não se recuperou.
É fato que o dólar tem sido adotado como moeda extraoficial do país desde os anos 1970. Hoje, os argentinos compram e vendem imóveis pagando em dólar, negociam contratos de aluguel na moeda americana e, com a inflação galopante, passaram a trocar o peso pelo dólar de forma diária. A Argentina é o país latino-americano que apresenta a maior diferença entre o dólar oficial e o dólar paralelo, chegando a mais de 110%.
A rápida desvalorização do peso foi contornada pelo governo por meio da criação de nada menos que 20 diferentes tipos de câmbio, cada um para uma finalidade. Assim, além do dólar blue (o paralelo “oficial”, trocado nas ruas), há o dólar MEP, usado no mercado de ações, o dólar soja (para remunerar os exportadores de grãos) e versões curiosas, como o dólar coldplay, para pagar artistas internacionais que se apresentam no país, e até o dólar netflix, para quitar serviços de streaming.
A preferência pelo dólar é tão grande que, para se defender da inflação, os argentinos têm uma das mais baixas taxas de depósitos bancários em moeda nacional (9% do PIB). Estima-se que US$ 262 bilhões, valor equivalente à dívida externa do país, são “guardados no colchão”, ou seja, mantidos fora do sistema financeiro formal.
Flerte com com o dólar
Essa relação próxima com a moeda americana ajuda a entender esse flerte com a proposta. Para o economista Alberto Ramos, diretor do grupo de pesquisa macroeconômica para América Latina do banco Goldman Sachs, a dolarização requer um tipo de disciplina da política macroeconômica que as autoridades argentinas jamais adotaram.
Segundo ele, embora a dolarização praticamente acabe com a inflação, os desequilíbrios macroeconômicos - em especial a recessão, perda de competitividade da indústria e desemprego alto que vêm na sequência - dificilmente serão resolvidos. “Foi isso que acabou com convertibilidade nos anos 1990, foram anos de deflação, mas também de desemprego."
Outro aspecto dificulta que a dolarização dê certo no país vizinho. “A Argentina não tem o luxo do Brasil e México, o de ter um mercado de capitais que permite ao setor público satisfazer suas necessidades financeiras em moeda local”, afirma. “Por isso está sempre dependendo de favores de terceiros.”
O fato de o país já ter dado calote em sua dívida externa nove vezes ao longo de sua história, a última em 2020, reforça essa certeza. Da dívida pública do país, 70% são compromissos dolarizados.
Carlos Honorato, professor da FIA Business School, atribui a adesão à ideia da dolarização por parte da população ao cansaço com a crise econômica, que vem se agravando desde o início da pandemia e mergulhou um em cada quatro argentinos na pobreza.
“Já tentaram de tudo e não deu certo e acabam se agarrando às supostas vantagens em adotar o dólar, como o fato de praticamente dizimar a inflação e ajudar as atrair os investimentos estrangeiros”, diz, destacando a notória distância argentina do equilíbrio fiscal.
Segundo ele, uma nova tentativa de dolarização seria uma solução tipicamente latino-americana, de improviso. Ou seja, após o choque inicial, dificilmente vai adotar medidas saneadoras na sequência, como defender a paridade, o corte de gastos e, depois, investir em medidas sociais para amenizar o custo da recessão e queda do poder aquisitivo. “O risco é repetir o erro do tradicional plano de três fases: faz a primeira, dá certo, e deixa de lado as outras duas.”