Símbolo da culinária brasileira, o pão de queijo nasceu em uma fazenda mineira, no século 18, em meio à efervescência do ciclo do ouro. Distante da costa, a região tinha pouco acesso à farinha de trigo vinda de Portugal. A mandioca, porém, era farta.
Base da alimentação dos indígenas e dos africanos escravizados, o tubérculo então substituiu o ingrediente português.
Àquela época, como a agropecuária de Minas Gerais começava a se especializar na produção de laticínios, leite e sobras de queijo endurecido foram incorporados à massa para tornar o preparo mais apetitoso. Assim, o pão improvisado por falta de farinha de trigo virou “o” pão de queijo.
Três séculos depois, a mineira Rafaela Gontijo, de 35 anos, recuperou aquela “receita raiz”, trocou a banha de porco por manteiga e criou uma das startups mais celebradas (saborosas e sustentáveis) do ecossistema global de inovação agrifoodtech.
Fundada em 2015, em Pato de Minas, cidade natal da empresária, a Nuu Alimentos acaba de entrar para a lista 2023 do FoddTech 500, elaborada pela consultoria inglesa Forward Fooding. A láurea é um reconhecimento aos empreendedores de todo o mundo que melhor combinam alimentação, tecnologia e sustentabilidade.
Essa é apenas a honraria mais recente. Em 2021, a Nuu foi agraciada com o título UN Best Small Business: Good for All, da Organização das Nações Unidas (ONU).
O prêmio reconhece as 50 pequenas empresas de alimentação, com impacto positivo para o planeta.
No ano seguinte, o pão de queijo colorido da startup de Patos de Minas foi considerado, pela brasileira Local.e, o segundo alimento mais criativo de 2022. Pensando em enriquecer nutricionalmente o produto e torná-lo mais atrativo para as crianças, a equipe da Nuu decidiu “tingi-lo” com cenoura, beterraba, chia e cúrcuma.
Além do pão de queijo, a foodtech produz hoje também palitinhos e pizza — tudo de mandioca. Em uma parceria com o chef Rodrigo Oliveira, a Nuu lançou os dadinhos de tapioca, uma invenção do dono do premiado restaurante Mocotó.
A marca está em 2,2 mil pontos de venda, em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito do Santo. Algumas cafeterias vendem os produtos da Nuu, mas os principais clientes são os supermercados — Zona Sul, Pão de Açúcar, St. Marché, Casa Santa Luzia e Carrefour, entre outras.
Na última edição do festival Lollapalooza, lá estava a Nuu viralizando nas redes sociais com o seu "roça n'roll".
Fidelidade às origens
Apesar de todas as tecnologias e modernidades, Rafaela se mantém fiel às origens, à singeleza dos ingredientes. O propósito da empresa está no "sabor das coisas mais simples, em produzir alimentos saudáveis e deliciosos e ser uma indústria inovadora e caipira ao mesmo tempo”, como se lê no manifesto da startup. “Uai not?”
É Nuu em referência à interjeição típica dos mineiros para expressar surpresa, uma espécie de “nooossa”. É Nuu também em alusão à nudez — “sem glúten, corantes, aromatizantes e sem pressa”.
O queijo utilizado em todos os produtos é artesanal, à base de leite cru — tido, aliás, como patrimônio imaterial do Brasil. Como no passado, na Nuu, o leite e a manteiga, por exemplo, são escaldados; um processo longo e demorado.
“Às vezes, a simplicidade é complexa e dá trabalho”, diz a empreendedora. Mas, a paciência faz toda a diferença. E serve de chamariz para os venture capital.
No ano passado, a Nuu levantou R$ 20 milhões, em sua primeira rodada de investimentos. O aporte foi liderado pelo fundo de impacto canadense EcoEnterprises Fund, com participação de outras empresas de VC, tanto nacionais como internacionais.
A “foodtech caipira” não seria esse sucesso todo não fosse o ambiente de negócios desenvolvido por Rafaela. Ao perceber que poderia reduzir a pegada ecológica de seus produtos em 15% caso a startup tivesse fábrica própria, ela se cercou de especialistas em arquitetura sustentável e em economia circular e investiu R$ 3,5 milhões na construção de uma unidade de produção.
“A fábrica já nasceu carbono negativo”, comemora a empresária, em conversa com o NeoFeed. E, assim, a Nuu se tornou uma empresa regenerativa, pautada pela conservação e reabilitação da natureza.
Inaugurada em outubro de 2021, com capacidade para produzir 100 toneladas por mês, a nova sede conta com energia fotovoltaica; janelas de vidro de ponta a ponta; depósito para reuso da água de chuva; telhas termoacústicas, para conservar a temperatura interna 8 graus abaixo da externa; tratamento dos efluentes e composteira para os resíduos orgânicos, entre outras medidas. Graças à parceria com o selo Eu Reciclo, 100% das embalagens são reaproveitadas.
Tem mais. Exceção feita à mandioca, todos os outros ingredientes, dependendo da época do ano, são fornecidos por 92 a 98 pequenos produtores rurais, em um raio de, no máximo, 40 quilômetros da sede. Os agricultores passam por um extenso processo não só de certificação e adequação às legislações, mas de educação também — “de olhar para o solo como um grande potencial de sequestro de carbono”, explica Rafaela.
O polvilho vem do Paraná. Como a mandioca é originária da Amazônia, a empresária contratou uma consultoria para mapear os produtores da região cujo cultivo da raiz se faz pelo sistema de agrofloresta. Das 12 levantadas, Rafaela escolheu duas — uma delas, só de mulheres.
A mandioca amazônica será a base de um dos lançamentos previstos para 2024 — qual, Rafaela prefere ainda não dizer. Usar o tubérculo para grandes produções, como a de pão de queijo, encareceria demais o preço final do produto. “A logística do agro ainda está muito voltada para as commodities”, explica.
Sem pressa, a empresária vai conquistando (e revolucionando) o mercado; em todas as esferas do negócio. Dos 50 funcionários, a diretoria e as lideranças são, respectivamente, 100% e 73% compostas por mulheres. Pouco mais da metade, por mães.
Com a batedeira da sogra
E pensar que tudo começou na cozinha do apartamento de Rafaela, no Rio de Janeiro, com a batedeira emprestada da sogra.
Formada em relações internacionais, a empreendedora trabalhava há quatro anos na Johnson & Johnson, quando decidiu se lançar no universo das foodtechs.
Os pais de Rafaela são donos da Fazenda Maria Dolores e, sempre que ela voltava de lá, trazia pão de queijo.
Os amigos se deliciavam. Diziam que “aquele” pão de queijo era diferente de todos os outros. “Eu não entendia muito... Aquele era o pão de queijo que eu nasci e cresci comendo”, lembra Rafaela.
Ela, então, foi investigar e descobriu que o pão de queijo ao qual a imensa maioria dos brasileiros está acostumada pode ser tudo menos pão de queijo.
Os industrializados então... uma maçaroca de gordura hidrogenada, com leite em pó, ovo em pó, corante e essência de queijo, entre outros ingredientes sintéticos. Sem gosto, ao menos, “aquele" gosto.
Rafaela estudou e chegou à receita do século 18. Com R$ 20 mil, comprou um forno, um freezer e uma batedeira.
Na pandemia, ela e o marido Ian Lenz, o designer responsável pela identidade visual da foodtech, decidiram cumprir o isolamento social na Fazenda Maria Dolores, com as filhas gêmeas Mel e Liz, de apenas seis meses.
Lá, fascinada pela vida na roça (“o ecossistema da fazenda é divino”), depois de avaliar os impactos ambientais dos sistemas agroalimentares tradicionais, pensando nas meninas, Rafaela decidiu: a Nuu seria parte da solução. O resto é história, uai.