Em 1967, na exposição Nova Objetividade Brasileira, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Anna Maria Maiolino expôs uma grande orelha, feita de tecido. A obra chamada "Psiu!" fazia alusão ao estado de vigilância em que as pessoas viviam durante a ditadura militar instaurada em 1964.
O trabalho infelizmente não existe mais, mas sua memória é lembrada na mostra "Anna Maria Maiolino: Psiuuuu…", que traz cerca de 300 trabalhos da artista e abre neste sábado (7) no Instituto Tomie Ohtake.
"O primeiro detalhe importante desse título é a ambivalência. Você pode ler como um convite, uma bronca ou um silenciamento, algo afetivo ou irritado. A existência simultânea de sentidos é muito importante para o trabalho da Anna em geral. Cada pessoa, dependendo da sua memória e das suas emoções, vai construir sua própria percepção das obras", explica o curador da mostra, Paulo Miyada, ao NeoFeed.
"O segundo ponto importante é que, sendo uma onomatopéia, 'psiuuuu' não pertence propriamente a um idioma. Isso também reflete a história da Anna como artista."
Filha caçula de uma prole de 10, Anna Maria Maiolino nasceu na Calábria, na Itália, em 1942, durante a Segunda Guerra Mundial. Mudou-se com a família para Bari, no norte do país.
Em busca de melhores condições, migraram novamente, dessa vez para a Venezuela, em 1954. No país latino-americano, Maiolino concluiu os estudos e começou a se interessar por arte. Aos 18 anos, viveu mais uma mudança: veio para o Brasil, em 1961, onde estudou gravura na Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro.
Para ela, se tornar artista no Brasil foi um ganho, porque havia liberdade de criação sem a sombra dos grandes mestres, como Leonardo Da Vinci, na Itália.
Maiolino fez parte do movimento Nova Figuração Brasileira, em que os artistas se contrapunham às diretrizes rígidas do movimento concretista e se dedicavam à busca de temas e estéticas que refletissem o país. Nessa época, ela se interessou pela xilogravura, mesma técnica usada nos livros de cordel.
Uma dessas gravuras desse período é "Anna", de 1967, na qual duas figuras pronunciam o seu nome, fazendo referência ao seu nascimento. O trabalho também dá título a um dos núcleos da exposição no Tomie.
Em ANNA, o visitante poderá ver os trabalhos que têm inspirações mais biográficas como "Por um fio", de 1976. Em uma fotografia, a artista aparece unida à mãe e à filha, por meio de um barbante que sai de sua boca.
O barbante pode ser lido como o cordão umbilical, os genes, o sangue ou a descendência que une essas três gerações de mulheres. De acordo com a artista, nada pode ser mais importante do que a vida, o que reflete em seus trabalhos.
Vida na obra
Em 1968, casada com o artista Rubens Gerchman (1942-2008), e com dois filhos pequenos, Maiolino se mudou para os Estados Unidos. Nesta época, para cuidar das crianças e prover o sustento da família trabalhando em um estúdio de design, a artista reduziu a sua produção artística, mas, aconselhada por Hélio Oiticica, começou a escrever.
Enquanto vigiava as crianças brincando, escrevia poemas, rascunhava ideias, desenhos e textos. Parte da produção textual da artista está na mostra em formato de texto, áudio e vídeo. O catálogo da exposição traz uma seleção inédita de seus escritos.
"A Anna fez escolhas ao longo da sua vida que foram custosas, desafiadoras e não foram aceitas com facilidade, mas que hoje reverberam muito nas demandas coletivas", diz Miyada.
"Ela reivindicou o direito de se apresentar como uma mulher que tem desejo, sexualidade e cumpre inúmeros papéis ao longo do dia – mãe, amiga, amante, esposa, escritora, artista. Essa vivência transparece no trabalho, criando relações afetivas que revelam os sentimentos da artista perante o que acontece ao seu redor."
Na infância, vivendo o pós-guerra na Itália, Maiolino se recorda de passar fome. A mãe a levava para a escola prometendo que mais tarde traria a merenda, mas a refeição nunca chegava porque não havia o que comer em casa.
A lembrança de não ter comida, somada à experiência de ver no Brasil parte da população vivendo situações de miséria e fome, é refletida na instalação "Arroz e Feijão" (1979) – uma mesa posta com pratos servidos de terras e sementes que germinam. Esta obra está exposta no núcleo Não Não Não.
A mostra não está organizada de maneira cronológica, mas por assunto. A artista costuma dizer que sua vida não caminha em linha reta, mas em espiral em que os temas vêm e vão. "Trabalhos feitos recentemente dialogam com obras feitas no passado.
O modo como isso se manifesta é numa exposição que não é cronológica nem linear, mas que se organiza por ênfase. Em cada ênfase, você tem muitos períodos e muitas linguagens", explica o curador.
Tempo alargado
A primeira conversa que Miyada teve com Maiolino para fazer a exposição aconteceu em 2016, mas a artista estava envolvida com outros projetos. Naquele ano, inaugurou a individual "Tudo Isso'', na galeria Hauser & Wirth, em Zurique, na Suíça; no ano seguinte, abriu sua maior retrospectiva nos Estados Unidos, no Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles (MoCA).
As conversas foram retomadas em 2019 e o tempo para a realização da pesquisa acabou sendo alargado pela pandemia de Covid-19 – declarada pela Organização Mundial da Saúde em 2020 – e pelos processos de captação de recursos mais burocráticos.
"Três anos é um período longo para a preparação de uma exposição no Brasil. Mas esse tempo teve bons frutos, como conseguir aprofundar o diálogo e desenvolver com profundidade cada detalhe tanto do catálogo quanto da exposição", explica o curador.
A mostra traz ainda o trabalho inédito "O amor se faz revolucionário", resultado de um projeto de 1992. Maiolino viveu na Argentina entre 1984 e 1989. O trabalho é uma homenagem às Mães da Praça de Maio - mulheres que protestam até hoje por seus filhos assassinados durante a ditadura militar do país.
"Logo que voltou para o Brasil, a artista não encontrou forças para realizar a obra. Mas em nossos diálogos, percebemos que esse era um momento importante para a obra ser realizada", diz Miyada.
Em uma época em que o país vê as barbáries da ditadura militar brasileira sendo relativizadas e o mundo vivencia crises migratórias e discussões sobre os direitos das mulheres sobre os seus corpos, o conjunto de trabalhos de Maiolino, independentemente da época, se mostra atual. "É um trabalho de extrema relevância histórica, que se interessa e se comunica fortemente com o presente", conclui Miyada.
"A franqueza e o compromisso ético da Anna em se apresentar inteira, em seus múltiplos papéis, fazem com que o trabalho seja muito mais vivaz e que inúmeras pessoas possam se reconhecer neles. Pessoas que, como ela, se sentem comprometidas em reagir de forma ética, estética e emocional às violências do seu tempo."