Portugal está prestes a se separar, novamente, da Espanha. Mas, desta vez, a divisão será pacífica e muito saborosa, ao contrário da ocorrida há 384 anos, quando a União Ibérica chegou ao fim.
Na próxima terça-feira, 27 de fevereiro, em Algarve, o Guia Michelin lança sua primeira edição dedicada exclusivamente aos restaurantes portugueses. Na ocasião, serão anunciados também os ganhadores de suas cobiçadas estrelas.
Embora as cozinhas espanhola e portuguesa, assim como a cultura dos dois países, tenham similaridades – principalmente por sua história e proximidade geográfica– ter um Guia Michelin de Portugal era algo mais que esperado e merecido.
Entre as décadas de 1990 e 2000, o país viu surgir uma geração de chefs que revolucionou a tradicional gastronomia portuguesa com novas técnicas e combinações de sabores, elevando a cozinha lusitana a um nível nunca dantes experimentado.
Vítor Sobral, Joaquim Figueiredo e Miguel Castro e Silva foram alguns dos pioneiros da turma. Depois, deles se estabeleceram Henrique Sá Pessoa, João Rodrigues e José Avillez.
Desse seleto grupo, o nome de Avillez se destaca. No 33º lugar na lista dos 100 melhores chefs do mundo, segundo o The Best Chef Awards, aos 44 anos, ele está à frente de um grupo gastronômico, com 15 estabelecimentos. Treze deles, em Portugal.
Com três restaurantes, o chef acumula quatro estrelas Michelin. Duas com o lisboeta Belcanto e uma com o Encanto, de alta gastronomia vegetariana, também na capital portuguesa. A última foi conquistada com o Tasca, de Dubai.
E é dado como certo, por críticos e especialistas em gastronomia: na próxima terça-feira, o Belcanto será agraciado com mais uma honraria do guia francês.
“Quando falamos de arte gastronômica, o José Avillez é uma referência. Ele foi um dos primeiros chefs em Portugal a valorizar a tradição da culinária portuguesa, modernizando e dando visibilidade à gastronomia do seu país”, diz Claude Troisgros, em entrevista ao NeoFeed.
Dono do restaurante Chez Claude, em São Paulo, entre outras casas, ele o chef português conviveram mais assiduamente, em 2019, durante o reality Mestre do Sabor, exibido pela GNT.
Estagiário pelo mundo
Até os 20 anos, Avillez jamais sonhara em ser cozinheiro. “Antigamente, em Portugal, só ia para a cozinha quem não conseguia fazer mais nada”, costuma lembrar o chef. Ele estudou arte, queria ser arquiteto e se formou em comunicação empresarial.
Em sua tese de conclusão da faculdade, ele escolheu o tema “Imagem e Identidade da Cozinha Portuguesa”. Para o trabalho, entrevistou 50 portugueses e 50 estrangeiros sobre o que definia a gastronomia lusitana. Com isso, além de aprender muito sobre gastronomia, conheceu chefs, gastrônomos, jornalistas, críticos e outros especialistas do meio.
Uma coisa leva a outra e Avillez ficou com vontade de conhecer de perto uma cozinha profissional. No último ano da faculdade, estagiou no restaurante Fortaleza do Guincho, em Cascais. Pronto! Ele foi arrebatado pelas panelas.
“Ali, meu coração começou a bater mais rápido e tive certeza de que era isso que eu queria fazer para sempre”, lembra, frequentemente.
Dali foi estagiário de José Bento dos Santos, na Quinta do Monte D’Oiro; de Alain Ducasse e de Eric Frechon. Até que finalmente realizou seu maior sonho: trabalhar com Ferran Adrià, o chefe espanhol dono mítico El Bulli.
De 2008 a 2011, assumiu a chefia da cozinha do Tavares, o restaurante em atividade mais antigo de Portugal, inaugurado, em 1784. Foi lá que Avillez conquistou sua primeira estrela Michelin.
No Brasil, ele estagiou no Olympe, no Rio de Janeiro, sob comando de Troisgros. “Eu não me lembrava, porque o José era bem novo e isso deve ter sido há uns 20 anos, mas foi ele quem me contou quando fizemos o Mestre do Sabor”, lembra Troisgros. “Saber disso, depois de ver o quanto ele cresceu, só me enche de orgulho.”
Depois de passar pelas cozinhas dos melhores chefs do mundo, Avillez abriu, em 2011, o Cantinho do Avillez, seu primeiro restaurante em Chiado, um dos bairros mais emblemáticos de Lisboa. Hoje, há um Cantinho do Avillez no Parque das Nações, também na capital, em Cascais e no Porto.
As casas têm todas o mesmo perfil: pratos que unem a tradição da gastronomia portuguesa à modernidade, com pitadas de influências dos sabores que o chef descobre em suas viagens.
Avillez chegou ao Belcanto em 2012. Fundado em 1958, o restaurante sempre foi um tradicional ponto de encontro da alta sociedade lisboeta. Não foi fácil, no início. Como a casa já era conhecida, os clientes tinham muitas expectativas.
Era preciso achar um caminho que conciliasse os clássicos do menu da antiga casa com a modernidade de seu trabalho. E Avillez conseguiu. Em menos de um ano sob seu comando, comando, o Belcanto foi contemplado com a primeira estrela Michelin.
A segunda veio em 2014 e, em 2019, o restaurante já figurava entre os melhores do mundo no ranking The World’s 50 Best Restaurants. Atualmente, o Belcanto ocupa a 25ª posição e é o número 1 de Portugal.
Seriedade e alegria, caipirinha e pagode
Em um ambiente acolhedor, sob tetos abobadados, Avillez oferece dois menus degustação, a preços variando entre 175 e195 euros, que “levam os comensais numa viagem gastronômica da cozinha portuguesa contemporânea”, lê-se na descrição feita pelos inspetores do The World’s 50 Best Restaurants.
O esmero com que cria os pratos e a equipe composta por profissionais talentosos são a marca registrada do Grupo José Avillez. “Morro de inveja da organização da empresa dele”, diz Kátia Barbosa, chef do Aconchego Carioca e do Sofia, no Rio de Janeiro, em conversa com o NeoFeed. “José é um chef brilhante. Mas não é só isso. José tem muito respeito por quem trabalha com ele.”
Sério e perfeccionista no trabalho, fora da cozinha, Avillez é uma pessoa muito engraçada, lembra Katia. Gosta de pastel, feijoada e caipirinha. Adora samba e pagode. A chef carioca conta já ter visto o colega cantando rock em um de seus aniversários.
“Muitas vezes cozinhei nos restaurantes dele e vi que há um clima de camaradagem, porque é ele esperto: se cerca apenas dos melhores, cobra os processos e aí é só correr para o abraço. Ele é o grande mestre”, elogia Katia.
E nesse abraço cabe o mundo. Ultrapassando as fronteiras de Portugal, ele leva sua cozinha para além-mar. Em 2023, aportou em Macau, com o seu Mesa.