Não é de hoje que o futuro é visto com medo. A literatura, o rádio, a televisão, o cinema e os quadrinhos criaram uma infinidade de obras distópicas. Nelas, a humanidade vive em um caos apocalíptico - guerra nuclear, superpopulação, fome, epidemias e conflitos de classe. No mundo real, esses temores também existem.
Aos 80 anos, o cientista e analista político tcheco-canadense Vaclav Smil, professor emérito na Universidade de Manitoba, membro da Royal Society do Canadá e um dos autores preferidos de Bill Gates, tratou do assunto em 2023, em Invention and Innovation.
No livro, Smil explica por que considera exageradas as promessas trazidas pelas última inovações — de novas terapias para doenças incuráveis às aplicações da inteligência artificial.
Em sua nova obra Como o mundo funciona, lançado na Brasil pela Intrínseca, Smil volta ao tema, mas agora com a provocação: o que tornará possível a vida no século 21? No livro, ele apresenta fatos fundamentais para a compreensão dos rumos da sociedade global nas próximas décadas.
Em síntese, a humanidade nunca teve tanta informação a seu alcance e, no entanto, a maioria de nós não sabe como o mundo realmente funciona tampouco faz ideia de para onde ele vai. Para o cientista, só estaremos aptos a enfrentar o futuro de forma minimamente eficaz, se compreendermos de verdade os fatos presentes.
Para tanto, Smil leva o leitor a se aprofundar no que ele define como “as sete realidades fundamentais”, imprescindíveis não só para nossa sobrevivência como para nossa prosperidade.
Como qualquer pensador que levanta questões sobre o presente e o futuro, Smil traz pontos concordantes e discordantes. “Não sou pessimista nem otimista, sou um cientista que tenta explicar como o mundo realmente funciona”, avisa ele.
A partir da leitura de Como o mundo funciona, o NeoFeed fez uma breve análise de cada uma das tais realidades.
Energia
O cientista mapeia como as sociedades baseadas no alto consumo de energia se tornam cada vez mais dependentes dos combustíveis fósseis e, em particular, da eletricidade, a forma mais flexível de energia.
O conhecimento dessa realidade, afirma, “serve como uma necessária correção para os argumentos, comuns hoje em dia (“baseados em uma compreensão equivocada de realidades complexas”), de que podemos descarbonizar o suprimento global de energia rapidamente, e que levaria apenas duas ou três décadas para passarmos a depender somente de fontes de energia renováveis”.
Smil explica que, embora o mundo converta parcelas cada vez maiores de geração de eletricidade a partir de novas fontes de energia, como a solar e a eólica, e coloque mais carros elétricos nas ruas, descarbonizar caminhões, aviões e navios será um desafio muito maior, bem como a produção de materiais essenciais sem depender de combustíveis fósseis. E até 2050, pelo menos, será assim.
Alimentação
A segunda realidade fundamental é a da necessidade mais básica para a sobrevivência: a produção de comida. Ele explica que os meios de subsistência, do trigo ao tomate e ao camarão, requerem, direta e indiretamente, de uma quantidade enorme de combustíveis fósseis.
“A consciência dessa nossa dependência fundamental em relação aos combustíveis fósseis leva a uma compreensão realista da nossa necessidade contínua de carbono fóssil”, escreve o cientista.
Pilares da civilização moderna
No capítulo três, Smil discute como e porque as economias são sustentadas por materiais criados pela engenhosidade humana. Principalmente, o que define como os quatro pilares da civilização moderna: amônia, aço, concreto e plásticos.
“Compreender essa realidade deixa clara a natureza enganosa das afirmações sobre a desmaterialização das economias modernas, dominadas por serviços e dispositivos eletrônicos miniaturizados”.
A redução relativa das necessidades de material por unidade de muitos produtos manufaturados, acredita ele, tem sido uma das tendências que definiram os avanços industriais modernos.
Em termos absolutos, porém, as demandas materiais têm aumentado mesmo nos países mais ricos e permanecem abaixo de qualquer nível de saturação concebível em países de baixa renda, onde possuir moradias dignas e eletrodomésticos (sem falar nos automóveis) continua a ser um sonho para bilhões de pessoas.
Globalização
Como o mundo se tornou tão interconectado pelo transporte e pela comunicação é a quarta realidade fundamental de Smil.
“Essa perspectiva histórica mostra como são velhas (melhor dizendo, antigas) as origens desse processo, e como é recente (e global, de fato) o ápice de sua extensão”, lê-se em Como o mundo funciona.
Para o cientista, no entanto, um olhar mais atento deixa claro que não há nada de inevitável a respeito do curso futuro desse fenômeno percebido de forma tão ambivalente.
Além de um tendência geral de retorno ao populismo e ao nacionalismo, fatos recentes mostram como a globalização nem sempre é a melhor saída.
Em 2020, no auge da pandemia do novo coronavírus, ficou evidente, segundo ele, que era uma ingenuidade permitir que 70% das luvas de borracha do mundo inteiro fossem produzidas por uma única fábrica, no caso, uma empresa da Malásia.
Doenças
O quinto capítulo oferece o que o cientista chama de uma estrutura realista para julgar os perigos que nos são colocados. Para ele, ou subestimamos ou superestimamos as ameaças.
“As sociedades modernas conseguiram eliminar ou reduzir muitos riscos que antes eram mortais ou incapacitantes — a pólio e o parto, por exemplo —, mas muitos perigos seguirão conosco para sempre, enquanto persistirmos em avaliações de risco inadequadas.”
Crise ambiental, catástrofe e tecno-otimismo
Na sexta realidade fundamental, Smil examina, primeiro, como as mudanças ambientais podem afetar as três necessidades essenciais: oxigênio, água e comida. Em seguida, foca no aquecimento global, a crise que tem dominado as preocupações recentes e que levou, por um lado, ao surgimento de um novo e quase apocalíptico catastrofismo e, por outro, a negações completas do processo.
Smil sugere que, em vez de retomar e julgar a contestação a esses argumentos (muitos livros já fizeram isso), prefere enfatizar que, ao contrário da impressão geral, esse não é um fenômeno descoberto recentemente. “Nós entendemos os fundamentos desse processo há mais de 150 anos”, defende.
Mesmo assim, a humanidade optou por ignorar explicações, advertências e fatos registrados. Em vez disso, escreve ele, multiplicou o uso de combustíveis fósseis, o que provocou uma dependência que não será interrompida de forma fácil ou barata.
A rapidez com que podemos reverter esse quadro ainda não está clara, diz: “Some isso a todas as outras preocupações ambientais, e vamos concluir que não há respostas fáceis à principal questão existencial: a humanidade é capaz de realizar suas aspirações dentro dos limites seguros da nossa biosfera?”.
Na sétima realidade fundamental, ele se volta para o futuro, sobre as recentes tendências antagônicas de abraçar o catastrofismo (“aqueles que dizem que faltam apenas alguns anos para que a cortina final desça sobre a civilização moderna”) e o tecno-otimismo (“aqueles que projetam que os poderes da invenção abrirão horizontes ilimitados além dos confins da Terra, transformando todos os desafios terrestres em histórias insignificantes”).