A lógica da vida nunca teve qualquer sentido para a cantora Elza Soares, que morreu na quinta-feira, 20 de janeiro, aos 91 anos. Nas duas últimas décadas, na idade em que a maioria das estrelas decide se aposentar, ela atropelou os efeitos do tempo e de uma das existências mais sofridas do mundo artístico brasileiro, apoiou-se em uma cadeira de rodas e se juntou a mulheres no enfrentamento à violência masculina e ao racismo.
Para isso, contou com sua ainda potente voz e passou a cantar como nunca, mesmo com limitações de locomoção, que apenas a privaram de sambar. Somente nos últimos quatro anos, lançou três discos aclamados pela crítica, com várias letras que tratavam de militâncias diversas – algumas bastante contundentes, verdadeiros manifestos políticos. Sabia o que queria ainda deste mundo, já depois dos 85 anos: mudar o que fosse possível, no tempo que lhe restava.
Até o início da pandemia, Elza se dividia entre shows, entrevistas e participações em atos diversos – a última apresentação em palco ocorreu no dia 19 do mês passado, em Belém. Como uma gata de sete vidas, encarava a última delas com tranquilidade, parecia não se importar se o fim chegasse logo. Antes, existiram incontáveis Elzas, como pessoa e artista. Teve uma existência tão acidentada que, em 1997, o escritor José Louzeiro publicou sua biografia com o sugestivo título de “Elza Soares – Cantando para não enlouquecer” (Editora Planeta).
Elza nasceu para dar errado, na favela do Morro do Vintém, chamada, então, de Morro da Moça Bonita – poderia haver um nome de lugar mais belo? Era o ano de 1930. Testemunhou quase um século de história do Brasil. Não só viu tudo, como passou por sua pele as mazelas do país, acrescidas de violência doméstica e racismo.
Neta de ex-escrava, apanhou de todo jeito: da pobreza e de alguns homens que cruzaram seu caminho. Um deles ela amou além dos limites: o craque Mané Garrincha, com quem viveu exatos 20 anos. Outros, suportou no limite da sanidade e da degradação física e moral. “Sou alegre porque todas as vezes que a vida me bateu eu revidei”, disse, certa vez.
Em 1942, aos 12 anos, o pai a obrigou a largar os estudos e a se casar com um amigo seu, Alaúrdes Soares, para salvar sua honra, depois de ele abusar dela. Vivia entre espancamentos e violência sexual diários. Virou mãe aos 13, teve o segundo filho aos 14, que morreu um ano depois, “de fome”. Com 21 anos, veio a viuvez e o alívio – ele lhe teria acertado dois tiros ao descobrir que cantava na noite, enquanto definhava tuberculoso.
Somente nos últimos quatro anos, lançou três discos aclamados pela crítica, com várias letras que tratavam de militâncias diversas
Com 27 anos, era mãe de cinco filhos – quatro meninos e uma menina. Esta se chamava Dilma e foi levada pequena, em 1950, por um casal que tomava conta enquanto Elza trabalhava. A cantora passaria 30 anos à procura da filha, até encontrá-la e iniciar um lento processo de reaproximação. Para alimentar tantas bocas, virou encaixotadora e conferente em uma fábrica de sabão. Depois, trabalhou em um manicômio, onde furtava comida para os filhos.
Descoberta pelo compositor e radialista Ary Barroso em seu programa de calouros, Elza concluiu que tinha voz para assustar a fome e espantar a dor. Atingiu o sucesso em 1959, com o samba "Se acaso você chegasse". Ao longo da década de 1960, praticamente gravou um disco por ano e vários compactos pela multinacional Odeon.
A guinada veio em 1962, quando cantou como representante do Brasil na Copa do Mundo, no Chile. Lá, conheceu e se apaixonou por Garrincha. Por isso, recusou o convite de Louis Armstrong, que lhe propôs apadrinhá-la em carreira nos EUA.
Perseguida a pedradas
A aproximação com o jogador, enquanto ele ainda era casado, trouxe desgaste à imagem dos dois. Elza foi acusada de oportunista e destruidora de lar pelos fãs e a imprensa. No tempo em que moraram na Ilha do Governador, pedras foram arremessadas contra sua residência com bilhetes ofensivos. Chegou a ser impedida de dar um show por uma multidão enfurecida e sofreu mais uma tristeza: um tombo a levou a abortar o filho do jogador.
Por causa de sua amizade com o Presidente Juscelino Kubistchek, a polícia política da ditadura (Deops) invadiu sua casa de madrugada, em busca de documentos que a incriminasse. Pressões de todos os lados levaram os dois a se mudar para a Itália, em 1972. Mas retornaram no mesmo ano. Deprimido por se culpar pelo acidente de carro que matou sua mãe, o ex-craque se afundou no álcool e a relação acabou em 1982, porque ela estava cansada de constantes agressões físicas, ciúmes, traições e humilhações.
Garrincha morreu de cirrose hepática um ano depois, em 20 de janeiro de 1983 – no mesmo dia, 39 anos depois, seria a vez de ela partir. Nesse ano, Elza tentou recomeçar a carreira nos Estados Unidos e não conseguiu. Voltou decidida a largar a música, mas foi convencida por Caetano Veloso, em 1984, a gravar "Língua", sucesso que revigorou sua carreira.
Em 1986, com o falecimento de seu filho Garrinchinha, em um acidente automobilístico, aos nove anos de idade, Elza resolveu ir para o exterior. Permaneceu por nove anos entre a Europa e os Estados Unidos. Voltou em 1994. O disco Trajetória, lançado três anos depois, deu-lhe o Prêmio Sharp de “Melhor Cantora de Samba”.
Voz do milênio
Com seu cabelo black power, que manteve com orgulho por muito tempo e sua arma inconfundível, a voz treinada para fazer do canto um berro de lamento, Elza seguiu em frente. Não tinha para ninguém. Cantar para ela parecia brincadeira de criança, ou embaixadinha de jogador com a bola.
Perto de fazer 70 anos, em novembro de 1999, participou, em Londres, do show “Desde que o samba é samba”, no Royal Albert Hall, ao lado de Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Virgínia Rodrigues. A performance de Elza chamou a atenção da BBC, que a incluiu na série de documentários sobre vozes do milênio.
A emissora lhe deu o título de “A melhor cantora do universo”. Com isso, o mundo se voltou para ela. Desde então, virou cult. Na 27ª edição do “Prêmio da Música Brasileira”, em 2016, levou o troféu de “Melhor Álbum”, na categoria “Pop/Rock/Reggae/Hip Hop/Funk”, com o CD A mulher do fim do mundo.
Elza também participou da cerimônia de abertura das Olimpíadas 2016, no Estádio do Maracanã, ao interpretar “Canto de Ossanha” (Baden Powell e Vinicius de Moraes).
Continuou a trabalhar intensamente, a lançar discos inéditos e teve sua biografia transformada no musical “Elza”, em 2018. No ano seguinte, tornou-se tema do desfile da escola de samba Mocidade Independente de Padre Miguel, com o enredo “Elza Deusa Soares”. No dia seguinte ao desfile, embarcou para o Equador, onde cantou e fez uma palestra na ONU sobre a mulher na América Latina.
Incansável, ainda em 2018, surpreendeu mais uma vez e soltou a voz em defesa da mulher e do negro no “Rock in Rio”
Elza viveu os últimos anos nas alturas, feliz demais, como inspiração, por sua voz e sua postura diante de questões sociais, políticas e estruturais injustas. Incansável, ainda em 2018, surpreendeu mais uma vez e soltou a voz em defesa da mulher e do negro no “Rock in Rio” – tornou-se a mais longeva atração de todas as edições do festival, com 87 anos.
Na terça-feira, 18, dois dias antes de morrer, Elza concluiu as gravações de um DVD de memórias e deixou pronto um disco inédito, seu canto do cisne, sobre a crise política brasileira, com previsão de lançamento antes das eleições deste ano. O Globoplay tem uma série documental sobre ela, em produção.
No dia da sua morte, ela disse para seu empresário que a estavam chamando lá em cima. Como se precisasse ir para mais um show. Sua longa temporada por aqui tinha sido brilhante, a seu jeito. No palco e na vida, cuja maior generosidade que lhe deu foi uma morte serena e sem dor. E isso foi tudo que ela sempre pediu.