Val Thorens — No final da década de 1960, quando, pela primeira vez, se cogitou construir uma estação de esqui no ponto mais elevado do vale de Tarentaise, nos Alpes franceses, houve quem julgasse o projeto uma loucura.
A 2,3 mil metros de altitude, a montanha era uma terra isolada, de natureza hostil –um deserto branco. “Muito alto, muito longe, muito frio, muito ventoso e sobretudo muito arriscado”, diziam os que se opunham à abertura.
Passados 53 anos de sua inauguração, a charmosa Val Thorens é hoje um dos resorts de neve mais badalados e exclusivos do mundo. Foi eleita, desde 2013, oito vezes o melhor destino de esqui, pelo World Ski Awards. A última, em 2023.
Todos os anos, entre novembro e maio, o vilarejo vira uma festa. Uma horda animada de turistas invade a cidade. A maioria estrangeira, sobretudo ingleses, belgas e holandeses –2% apenas são brasileiros, o equivalente a 40 mil pessoas.
Até pouco tempo atrás, a alegria invernal de Val Thorens era comum à maioria das estâncias de esqui. De dois anos para cá, porém, várias delas, sobretudo as de baixa altitude, estão sucumbindo à crise climática. E derretendo; literalmente.
Algumas tentam driblar o calor com canhões de neve artificial. Outras encurtam as temporadas de esqui. Sem contar as que encerram suas atividades para sempre.
Neve branca, fresca, lisa e fofa
Espécie de “herói da resistência” do aquecimento global, Val Thorens se mantém pulsante graças justamente às condições tidas, no passado, como perigosas. Na estação de esqui mais alta da Europa, a neve continua branca, fresca, lisa e fofa.
Em 2023, a cidade recebeu 2,3 milhões de turistas –3,5% a mais em comparação ao ano anterior. Para a temporada atual, são previstos 2,4 milhões de visitantes. “Mas esses dados mudarão com as reservas de última hora”, informam os analistas de G2A Consulting.
O aumento no número de viajantes está relacionado, sim, à retomada das viagens no pós-pandemia, mas sobretudo à chegada de esquiadores que, sem encontrar neve em paragens mais baixas, sobem para Val Thornes.
Pertencente à rede Beaumier, o hotel Le Fitz Roy é exemplar da nova realidade na estação alpina. Com diárias a partir de € 370 (cerca de R$ 2 mil), todos os 72 quartos estão reservados até o fim da temporada, em maio.
O lugar sempre foi bastante procurado, mas lotação máxima, ao longo dos seis meses de esqui, pelo menos até agora, era incomum.
Com diz Steve Delefortrie, gerente-geral do cinco estrelas, ao NeoFeed, “a altitude é hoje um grande atrativo”.
De praticamente todo o lugar de onde se olha do hotel, até dos banheiros de algumas suítes, é possível acompanhar o sobe e desce dos esquiadores na montanha.
Batizado Terraço, o restaurante principal traz clássicos da gastronomia francesa, assinados pelo chef Jonas Noël. Mas, no almoço, o hit entre os hóspedes é o churrasco, preparado ao ar livre.
O Le Fitz Roy é uma das doze propriedades da rede Beaumier. Metade delas, em destinos de neve. E, dessas, cinco estão nos Alpes - quatro na parte francesa da cordilheira e a outra, na suíça.
Fundado pelo francês Éric Dardé, o grupo nasceu como marca de alto padrão. Em tempos de temperaturas máximas, se transformou também em símbolo da resiliência da hotelaria de inverno.
Sem se deixar intimidar pelas incertezas climáticas, o empresário planeja inaugurar até o final do ano mais dois hotéis de esqui – um, na Áustria e outro na Suíça. “Nossa meta é chegar a 20 propriedades nos próximos quatro anos”, conta Dardé, em conversa com o NeoFeed.
Aos 51 anos, ele entrou no ramo da hospitalidade em 2013, quando fundou a rede Les Hôtels d'en Haut, rebatizada em 2021, em homenagem ao explorador francês Auguste Beaumier (1823-1876).
O portfólio do grupo Beaumier também inclui destinos veranis, como Ibiza, na Espanha, e Cote D'azur, na Riviera francesa, mas o destaque são mesmo os hotéis de neve. A urgência climática não é, definitivamente, uma questão para Dardé.
Vai esquentar mesmo
“Cedo ou tarde, o planeta vai ficar mais quente. O interessante sobre as montanhas é que existem muitas atividades que podem ser feitas fora do inverno”, defende o empresário. “Vejo cada vez mais resorts discutindo operar tanto no inverno quanto no verão. Alguns destinos já estão desenvolvendo outros tipos de atrações em seus entornos.”
Na comuna francesa de Mègeve, por exemplo, o hotel L’Alpaga Beaumier fica em altitudes mais baixas, e por isso, permanece aberto quase o ano todo. “Para além da neve, as montanhas têm muito a oferecer.”
No verão, a paisagem branca do lugar, a 1,1 mil metros de altitude, dá lugar aos tons de verde da vegetação, e o esqui é substituído por atividades de ecoturismo. Na simpática vila, alpina os hotéis oferecem, no sopé do Montblanc, atividades como hiking, mountain bike, parapente e piqueniques ao ar livre.
Na temporada de calor, as geleiras derretem e formam lagos e cachoeiras, o que também entra na lista das atrações turísticas. No L’Alparga, com dez chalés, os hóspedes podem sobrevoar a região, a bordo de um helicóptero.
Todos os anos, os Alpes recebe cercam de 120 milhões de visitantes, o equivalente a 40% do total de turistas globais de inverno; seguida pelos Estados Unidos, com 23%.
No mesmo período, a indústria alpina de esqui movimenta quase US$ 30 bilhões. Mas, a falta de neve traz prejuízos financeiros a todo o setor de turismo da região.
Entre 1971 e 2019, a cobertura de neve nos Alpes caiu 8,4%, a cada década, estimam os analistas da União Europeia de Geociências. Tem mais.
O aumento da temperatura na cordilheira europeia é duas vezes mais acelerado do que a média global, indicam estudos recentes.
Pelo menos por enquanto, Val Thorens segue sem grande alterações. Durante o dia, a diversão se mantém nas pistas, com esquiadores cortando a montanha, em incansáveis zigue-zagues.
No finalzinho da tarde e início da noite, a efervescência toma conta dos bares e restaurantes, nos tradicionais encontros après ski.
A 2,3 mil metros de altitude, a promessa ainda é de neve de no inverno. Até quando, não se sabe.