PARIS - O que fazer quando é preciso reformar uma parede grafitada? E se forem centenas de paredes, cobertas com algumas das obras de street art mais importantes da Europa? Para não as perder, o hotel parisiense Molitor optou por eternizá-las em NFTs (tokens não fungíveis, na sigla em inglês, espécie de certificado de autenticidade baseado em blockchain).
Os grafites decoram o interior dos 78 trocadores, localizados ao redor de sua elegante piscina de inverno, mundialmente famosa, cenário de filmes e séries –Emily em Paris, da Netflix, entre as mais recentes.
Um charme assinado por artistas consagrados, como Hopare, Katre, Jace, Artiste Ouvrier, Mademoiselle Maurice, Kouka, Bradley Theodore, Mosko & Associés, Balder, Indie 184, Fred Calmets, Shuck One, entre muitos outros.
Para preservar a passagem deles pelas cabines do Molitor, as obras de Does, Mark93 e Nasty foram digitalizadas e transformadas em 390 tokens, já à venda no site do hotel.
Cada um custa € 599 (R$ 3,2 mil, aproximadamente). Quem comprar as peças concorre ainda a experiências extras, como um jantar no fundo da piscina e um encontro com os três artistas.
Até o final do ano, quando a reforma acabar, os grafites atuais existirão apenas no mundo digital. No físico, serão substituídos por outras obras, de outros artistas que emprestarão seus traços e cores ao hotel pelos próximos anos.
“As cabines se tornaram uma verdadeira galeria de arte que nossos hóspedes podem desfrutar livremente. No passado, organizamos até passeios artísticos para o público”, diz Benedicte Quoniam, diretora de vendas do hotel, em entrevista ao NeoFeed. “Hoje em dia, fazemos essa visita apenas mediante solicitação.”
A nova “galeria” do Molitor será mais internacional do que a primeira. Por ora, estão confirmadas as participações de artistas como Zlism (Hong Kong), Logan Hicks (Estados Unidos), Belin (Espanha), Ninin (Argentina) e Ruben Carrasco (México).
Do Brasil, são dois representantes. Entre os selecionados, está a paulista Fefe Talavera, famosa no circuito internacional da arte de rua. O segundo nome deve ser divulgado em breve.
As piscinas (e Paris) eram uma festa
Situado no 16º arrondissement de Paris, bem ao lado do complexo de tênis Roland Garros, o imponente edifício amarelo, de estilo art déco, do Molitor foi aberto ao público pela primeira vez em 1929.
Batizado Piscine Molitor Grands Etablissements Balnéaires d'Auteuil, o espaço não foi inicialmente concebido como hotel e, sim, como centro esportivo. Projetadas pelo arquiteto Lucien Pollet, as duas piscinas; uma de inverno e outra de varão; logo se transforaram em um dos endereços mais badalados da cidade.
Paris e as piscinas do Molitor eram uma festa. Um lugar onde as pessoas iam para nadar e tomar banho de sol. Mas, sobretudo, ver e serem vistas.
Para se ter ideia do prestígio do espaço, como parte da estratégia de divulgação da inauguração, o medalhista olímpico e futuro intérprete do primeiro Tarzan do cinema, o americano Johnny Weissmuller trabalhou como salva-vidas no local.
Outro momento histórico aconteceu no verão de 1946, durante um concurso de beleza. O biquíni foi apresentado ao mundo na piscina de verão do Molitor. Uma plateia embasbacada assistiu ao desfile da modelo Micheline Bernardini no maiô de duas peças, criado pelo estilista francês Louis Réard.
Por décadas, os deques do Molitor serviram como ponto de encontro para os parisienses –anônimos, artistas e celebridades. O lugar começaria a perder o glamour na década de 1970, quando a administração do clube fez da piscina interna uma pista de patinação no gelo. A atração de inverno não cativou e o tal ringue funcionou por apenas cinco meses.
Nos anos seguintes, por causa da má conservação das piscinas, o Molitor foi pouco a pouco perdendo prestígio e público. Até que, em 1989, a prefeitura fechou de vez o complexo.
“O Molitor é acima de tudo a piscina emblemática de Paris que os parisienses frequentaram de 1929 a 1989”, diz Benedicte, a diretora do hotel. “Quando fecharam, o local permaneceu abandonado e muitos artistas de rua começaram a chegar no que rapidamente se tornou a meca dos entusiastas do grafite.”
Como um edifício abandonado em Paris nunca fica sem uso por muito tempo, não demorou para o espaço ser “reaberto” clandestinamente e virar palco de shows, festas e até desfiles de moda da cultura underground.
Em 2001, a piscina coberta serviu de pista de dança para uma rave com mais de 2 mil pessoas. Até hoje, o evento é lembrado em Paris. Quando as autoridades chegaram, era tarde demais para conter a festa –e a diversão se prolongou por 12 horas ininterruptas.
O “resgate” do Molitor começou em 2007, quando a prefeitura de Paris abriu um edital para a recuperação e exploração do edifício. A empresa francesa de assets solutions Colony Capital arrematou o prédio e, associada ao grupo Accorhotels, prometeu recuperar o lugar, mantendo a arquitetura original.
As obras começaram em 2011 e, apesar de as piscinas terem sido demolidas devido aos anos de desuso, foram reconstruídas, seguindo o projeto do arquiteto Pollet. Com as mesmas balaustradas, mosaicos e cores.
Em 2014, o Molitor finalmente reabriu suas portas. A prefeitura concedeu os direitos de exploração às duas companhias por 54 anos. Hoje, o hotel possui 124 suítes, localizadas ao redor da piscina externa –o que dá aos hóspedes a sensação de que eles estão em um gigantesco navio de cruzeiro, no coração da capital francesa.
Os artistas de street art que conheceram Molitor durante o seu período de abandono foram convidados a voltar e deixar a suas marcas no agora hotel; conhecido pela atmosfera artística e descontraída, a mais undergroud de Paris
“Quando o hotel abriu, nos pareceu essencial manter a arte de rua, que conta com obras, além das cabines, no lobby, nas salas de reuniões... em quase todo o hotel”, diz Benedicte. “Com a reforma, queremos dar a novos artistas a oportunidade de renovarem este lugar único, e, ao mesmo tempo, vamos eternizar os grafites do passado em NFT.”