Quem, alguma vez, não parou para pensar o que as equipes comem enquanto os filmes são realizados? O cardápio vai depender do orçamento de cada produção. Quanto maior, melhor a comida. Depende também do lugar. Na Europa pode ser mais fácil encontrar pratos conhecidos e caprichados.

Mas, se for em um local onde as iguarias incluem animais um tanto exóticos ou de gostos e formas estranhos? Acredite, há diretores que gostam de colocar cenas de fartos banquetes para envolver o público ainda mais com o filme. A maioria das plateias não sabe que adora ver comida na tela.

Histórias assim ponteiam o literalmente delicioso "Sabor – Minha vida através da comida", autobiografia do premiado ator e diretor americano Stanley Tucci, conhecido por seus papéis em sucessos como "Jogos Vorazes" e "O diabo veste Prada", entre outros.

Lançado nos EUA no ano passado, o livro acaba de sair em português pela Intrínseca. Em boa parte da obra, Tucci narra histórias que viveu com astros de Hollywood durante as produções, a partir da relação com a gastronomia.

O primeiro filme que ele relembra é "A grande noite", que escreveu, codirigiu e interpretou sobre dois irmãos que imigram da Itália e abrem o restaurante de seus sonhos em Nova Jersey, mas encontram dificuldades para agradar os clientes com seus pratos autênticos.

Uma passagem divertida aconteceu na turnê de divulgação do filme "Julie & Julia". Um dia, ele, Meryl Streep e dois colegas escolheram almoçar em um bistrô na Normandia, próximo a uma estrada rural. O lugar foi sugerido pelo motorista que conduzia parte do elenco até Paris para uma entrevista coletiva.

A experiência ganhou contornos inusitados por causa de um erro simples de interpretação do cardápio. A dupla e um terceiro colega pediram andouivillette, uma linguiça semelhante a um pênis de cavalo e com um sabor para lá de esquisito.

Narra Tucci: “Ela cortou um pedaço e colocou na boca. Mastigou com cautela. Seu rosto estampou todo o espectro das emoções humanas em uma fração de segundos. Ela engoliu”. Mas não foi longe e o jantar terminou com inofensivas omeletes.

O convite para jantar que lhe fez Marcello Mastroianni durante as filmagens de "Prêt-à-Porter", de Robert Altman, marcou Tucci para sempre. Ele era assistente do diretor. “Quando, com a mão trêmula e manchada de cigarro, o dr. Mastroianni escreveu em um pedacinho de papel o nome do restaurante, acho que fiz a mesura de uma gueixa”. O autor garante que levará o guardanapo para o túmulo.

Nos últimos anos, além da carreira no cinema, o ator começou a chamar atenção pela sua relação com gastronomia. Apresenta, por exemplo, a série Stanley Tucci: Searching for Italy, na CNN, e a segunda temporada, por sinal, estreou em 13 de março.

Seu livro foi elogiado por nomes de peso como Nigella Lawson e Stephen Fry. O “problema” é que ele fala com tanto entusiasmo de uma infinidade de pratos que o leitor corre o risco de, o tempo todo, sentir vontade de largar a leitura para procurar desesperado algum restaurante ou experimentar as receitas.

Herança familiar

Tucci escreveu uma autobiografia tocante ao falar de sua relação familiar com a comida na nos primeiros anos de vida até a adolescência. E mostra que, por mais que qualquer pessoa experimente ao longo da vida variados pratos de diferentes culturas, é na infância que se escolhe as comidas preferidas.

Sim, aquelas que se busca quase como uma experiência de resgate pessoal e familiar. É o prato que só a mãe, o pai ou os avós sabem fazer. E isso nada tem a ver com sofisticação ou inclusão de ingredientes caros e requintados. Está ligado ao toque, a um truque, ao tempo de cozimento, a pitadas de amor e carinho.

Para ele, as receitas mais simples, na memória, constroem lembranças de um prazer que acompanhará a pessoa para sempre. Pesa também o lugar onde é feita, a mesa onde todos se reuniam ou reúnem.

Não por acaso, a relação entre vida, lembranças e gastronomia acabou por mudar. Tucci faz um relato mágico da rotina familiar dele, das duas irmãs e dos pais – o pai coordenava as disciplinas de arte de uma escola de ensino médio, onde a mulher trabalhava na secretaria –, que gerenciavam os salários para dar aos filhos uma mesa farta de pratos saborosos todos os dias.

Em vários momentos, o autor apresenta a receita e dicas de como preparar melhor cada prato. Misture isso a um texto bem escrito e generoso no modo de tratar as pessoas, as relações e tudo à sua volta. É o que se vê, por exemplo, no longo capítulo dedicado à ceia de Natal, um ritual próprio de famílias católicas como a de Tucci e que é um dos melhores momentos do livro.

Criado em Katonah, a 100 quilômetros ao norte de Manhattan, filho de imigrantes italianos, Tucci guardou uma rotina de ternura sobre as habilidades da mãe na cozinha e conclui que ela encontrou naquela habilidade um meio de buscar a felicidade familiar – até hoje, jura que antes de se casar nem sabia ferver água direito.

“Aquelas brincadeiras despreocupadas ao ar livre, em todas as estações do ano, foram uma parte maravilhosa da minha infância, mas ainda mais maravilhosa era a relação da minha família com a comida e seu preparo. A comida, seu preparo, seu serviço e seu consumo eram a principal atividade e o principal assunto de conversa em minha casa.”

Graças ao talento de sua mãe, escreve ele, comer nos vizinhos quando era criança ficava meio complicado. “As refeições pareciam sem graça ou simplesmente ruins. Meus amigos, por sua vez, ficavam felicíssimos por frequentar a nossa mesa. Eles sabiam que a comida em nossa casa era bem especial. Os ingredientes tinham sido cuidadosamente escolhidos ou cultivados de acordo com a estação; cada prato tinha uma tradição cultural e era feito com amor.”

Mas não era só com a comida em si que eles se deleitavam. Havia também a paixão presente no preparo e na apresentação, bem como a alegria da família durante as refeições. Os gemidos de satisfação a cada garfada se mostravam suficientes para convencer a pessoa a aproveitar a refeição, caso já não estivesse fazendo isso.

Entre um sussurro e outro de satisfação, havia a discussão habitual sobre como e por que tudo estava tão delicioso. "O melhor que você já fez, Joan", dizia seu pai a respeito de cada prato, todas as noites. E a vida parecia feliz. E era, garante.

No meio do caminho, a família viveu um ano na Itália, onde seu pai foi estudar. Em seguida, com uma memória prodigiosa, ele faz um inventário de seus primeiros anos como ator na região underground do Upper Est Side, em Nova York, as dificuldades financeiras, como se alimentar, o aprendizado e oferece um roteiro da gastronomia mais em conta na cidade no começo da década de 1980. Sua descrição do restaurante Corneguie Deli, ao longo de três páginas, por exemplo, é antológica. Ele literalmente o pega pelo estômago.

Serviço:


SABOR: MINHA VIDA ATRAVÉS DA COMIDA, de Stanley Tucci
Páginas: 320
Editora: Intrínseca
Livro impresso: R$ 69,90
E-book: R$ 46,90