“Sede vacante”, anunciou o cardeal Joseph Tremblay ao quebrar, com a ajuda de lâminas de uma tesoura, o anel do Papa que havia acabado de morrer. O trono da Santa Fé, a partir daquele momento, precisava de um novo ocupante e as negociações seriam iniciadas oficialmente. A senha para os preparativos do conclave estava dada. Não que as negociações já não tivessem sido iniciadas antes do anúncio do falecimento do pontífice.
O cardeal Joseph Tremblay não existe, a cena descrita acima tampouco. O personagem e a ambientação são da imaginação do inglês Robert Harris, 68 anos, o escritor de best-seller, mas que no início da vida profissional foi repórter da BBC, editor político do Observer e colunista do Sunday Times e do Daily Telegraph. O passado de Harris no jornalismo é o que explica as semelhanças entre o livro e o filme Conclave com a realidade da Igreja Católica.
Antes de ser um escritor, Harris é um obcecado por detalhes, uma característica do bom jornalismo. É isso o que se vê em Conclave, o livro lançado em 2016, pouco mais de três anos depois de Francisco, morto em 21 de abril, assumir o papado.
Por mais que o filme homônimo tenha sido adaptado — a película ganhou o Oscar nessa categoria — o enredo foi mantido, com poucas alterações, mostrando que a força da trama está na literatura.
Antes de Conclave, Harris escreveu outros livros que deram origem a outros filmes, como O escritor fantasma, dirigido por Roman Polanski. Tem um estilo rápido, inspirado na melhor literatura policial, pouco cultuada na academia, mas fundamental para a entrada de jovens leitores no universo dos livros — e que de vez em quando nos apresenta gente como James Ellroy, Dennis Lehane, Henning Mankel e Stieg Larsson.
Não que Conclave seja uma obra-prima como livro — o mesmo pode ser dito em relação ao filme, em alguns momentos quase óbvios. A arma de Harris está na ambientação, na construção dos personagens. Ali tem corrupção, pedofilia e pecados capitais, como soberba, inveja, ira, luxúria e gula. Não à toa, desagradou católicos mais fervorosos. Não à toa trouxe o livro mais próximo da realidade.
As diferenças geopolíticas e históricas da Igreja Católica também estão presentes. Um cardeal brasileiro — não retratado no filme — que é arcebispo de Salvador é um deles. “Sessenta anos, teólogo da libertação, um possível Papa, mas não agora”, escreve Harris. Tem um chileno “mais idoso”, arcebispo emérito de Santiago. “Setenta e sete anos, arquiconservador, ex-confessor do general Augusto Pinochet.”
Há um ponto quase sempre explorado com pouca exatidão por escritores que tentam se aproximar do real: o trabalho da imprensa. Autores que não vivenciaram a rotina de uma redação erram ao retratá-la. Harris, como se poderia esperar, vai fundo. E incluí artimanhas para publicação de notas favoráveis a determinados candidatos a Papa e intrigas armadas para derrubar rivais. Um bom livro mora nos detalhes.