Até pouco tempo atrás, com o perdão do trocadilho, era líquido e certo. Para definir um bom vinho argentino, apreciadores classificavam-no como um Malbec de Mendoza, região que concentra 75% da produção do país. Salta e Patagônia, outras duas áreas produtoras eram, praticamente, esquecidas. Mas, nos últimos anos, nem mais dizer que são de Mendoza ou das sub-regiões de Luján de Cuyo e Valle de Uco basta.
Há um novo mapa chamando a atenção de produtores, avaliadores e enófilos: Altamira, La Consulta e Gualtallary, os atuais berços dos maiores expoentes argentinos, terroirs pousados no Valle de Uco. No principal guia de vinhos sul-americanos, o Descorchados, os cinco melhores tintos da edição 2020 (três de Zuccardi e dois de Per Se) são de Altamira e Gualtallary.
A Wine Advocate, publicação criada por Robert Parker, atribuiu as duas primeiras notas de 100 pontos para vinhos argentinos em 2018, o Gran Enemigo Single Vineyard Cabernet Franc 2013 e o Catena Adrianna Vineyard Riverstone Malbec 2016. Em comum, ambos feitos com uvas de Gualtallary. No ano seguinte um terceiro vinho recebeu a nota perfeita da mesma publicação: Zuccardi Piedra Infinita 2016, um Malbec de Altamira.
O que há de especial nestas pequenas localidades? Sebastián Zuccardi, que está no comando da vinícola de sua família, uma das maiores da Argentina, explica que o Valle de Uco, vizinho da mais tradicional zona de Luján de Cuyo, não possui o platô de pré-cordilheira dos Andes. “O solo de Uco é complexo e formado por camadas de material de arrasto direto dos Andes, que foram se depositando ao longo dos rios que cortam Uco, sendo Tunuyán o mais conhecido”, diz ele.
Estas três zonas são as mais conhecidas sub-divisões de Uco e, em traços gerais, Gualtallary está no norte de Uco e é a mais elevada, chegando aos 1.600 metros de altitude. Como consequência, o clima é mais frio e o solo repleto de cascalhos cobertos por componentes calcários. Altamira e La Consulta estão cerca de 50 quilômetros ao sul de Gualtallary, com solo menos pedregoso, mas com mais capas de diferentes componentes. La Consulta está à leste de Altamira, descendo da Cordilheira, o que significa solos mais argilosos e um clima sutilmente mais quente que Altamira.
Na taça, a resposta vem de Eduardo Milan, editor de vinhos da revista Adega e do Guia Descorchados: “Em traços gerais, Gualtallary é exuberante no nariz, com mais referências de ervas e flores, com um toque de cinza e taninos firmes. Altamira é mais amável, com maior presença de fruta e taninos mais aveludados. La Consulta se aproxima mais da expressão tradicional da Malbec, com frutas negras, bom corpo e taninos sedosos”.
O especialista ainda recorda que, em 2011, primeiro ano que participou do guia sul-americano, havia poucas vinícolas que colocavam os nomes destas zonas no rótulo. “Mesmo quando colocavam os nomes das localidades específicas, naquela época era mais difícil perceber as diferenças na taça. Os vinhos eram mais maduros (ponto de maturação da fruta), com maior extração e forte presença das barricas”.
Mas isso mudou em 2017. “Foi um ano-chave, quando, além da maior presença destas sub-regiões declaradas nos rótulos, os vinhos perderam a marca da madeira, permitindo que estas nuances aparecessem”, afirma o especialista. Milan também reforça que todas estas mudanças não vieram ao acaso e, quase de forma irônica, um chileno teve um papel fundamental no desenvolvimento e mapeamento das zonas de Uco.
“Pedro Parra despertou esta visão na Zuccardi e também na Alto Las Hormigas, vinícolas que se destacaram em Altamira e Gualtallary”. Pedro Parra é doutor em geologia aplicada à viticultura e se tornou referência no mapeamento geológico de vinhedos, mostrando que sutis mudanças na composição e morfologia do solo impactam na expressão do vinho.
Até vinícolas gigantes como Trapiche, Nieto Senetiner e Catena possuem algum trabalho de mapeamento do subsolo de seus vinhedos, sendo que a última também foi precursora nesses estudos através de seu Catena Institute, um núcleo de pesquisa e desenvolvimento da vinícola fundado em 1995 e em parceria com a universidade UC Davis (EUA) e a Universidade de Cuyo (ARG).
Susana Balbo, a primeira mulher argentina a se formar como enóloga, em 1981, já tinha passado por grandes vinícolas argentinas como Catena e Michel Torino, antes de fundar seu projeto. Em 2013, chegou ao Valle de Uco e sua constatação dá a dimensão do interesse na região. “Uco tem 26 mil hectares, quase o tamanho da Borgonha. Em apenas 11 quilômetros de extensão temos as escalas 1, 2 e 3 de Winkler e com perfis de solos distintos”, siz ela.
A escala Winkler é uma medida de calor que na viticultura serve como referência para as variedades a serem cultivadas e os possíveis estilos dos vinhos. Na escala 1, considerado um clima frio, estão o Mosel e a Alsácia, por exemplo; na escala 2, estão as regiões da Borgonha e Piemonte; e na escala 3 estão Bordeaux e Rioja. No caso de Susana Balbo, seu principal vinho, Nosotros, é feito com uvas de Altamira, e no segundo degrau de qualidade (e preço) está a linha de Benmarco Expressivo, feito com uvas de Gualtallary.
O próximo e ousado passo das vinícolas argentinas é abolir a menção à variedade no rótulo. No Piedra Infinita de Zuccardi não há qualquer menção à variedade (100% Malbec), assim como nos recém-lançados Finca La Celia Vinos de Terrunyo. A linha composta por três rótulos traz apenas as menções ao nome da vinícola, safra (todos 2017) e as três localidades de origem: Paraje Altamira, La Consulta e Eugenio Bustos.
Neste caso, a ousadia é maior, pois, apenas La Celia Paraje Altamira é 100% Malbec. La Celia La Consulta é 100% Cabernet Franc e o rótulo Eugenio Bustos é 100% Cabernet Sauvignon. Segundo a enóloga Andrea Ferreyra, os lugares onde as uvas são cultivadas respondem mais pela personalidade do vinho que a variedade utilizada.
“O componente mineral e tânico que Altamira oferece é interessante para a Malbec, mas para a Cabernet Sauvignon é demasiado austero. Já o sutil calor e vigor de Eugenio Bustos amadurece a Cabernet Sauvignon de forma ideal”, diz a enóloga.