A intenção do ucraniano Sergei Loznitsa, por trás de cada trabalho como documentarista, sempre foi a de “alertar para que a história não se repetisse”. “Mas, desde fevereiro, nós voltamos 80 anos no tempo, com a invasão russa na Ucrânia, revivendo memórias dolorosas da Segunda Guerra Mundial”, afirma ele.

O motivo para “não termos aprendido a lição” é simples para Loznitsa, responsável por cerca de 20 longas-metragens que propõem passar a história da humanidade a limpo. São, em sua maioria, documentários ou obras de ficção sobre guerras e sobre os perigos dos regimes totalitários.

“Ainda não refletimos o suficiente sobre a destruição em massa, tendo civis como algo, que ainda é apresentada como uma legítima estratégia de guerra”, diz o cineasta de 57 anos. “Enquanto esse fenômeno não for cuidadosamente examinado, ele continuará nos assombrando.”

Seu último alerta foi o documentário “The Natural History of Destruction”, projetado fora de competição na encerrada 75ª edição do Festival de Cannes. A inspiração desta vez veio do livro publicado em 1999, pelo escritor alemão W.G. Sebald, “Guerra Aérea e Literatura” (Companhia das Letras).

Aqui o autor não só relembra a destruição de 131 cidades alemãs durante a Segunda Guerra como questiona por que a devastação da Alemanha pelos bombardeios aliados foi praticamente “apagada” na literatura do país. Ele sugere uma “negação” em virtude do trauma nazista, para explicar o bloqueio de escritores alemães em confrontar o drama humano de uma nação que ficou em ruínas.

“O livro causou polêmica na época de seu lançamento, com muitos ataques ao autor que simplesmente deixou uma importante pergunta no ar: Como pode ser moralmente aceitável atingir populações civis durante uma guerra?”, conta Loznitsa, em entrevista ao Neofeed, no Palácio dos Festivais, em Cannes.

Por mais que a ideia de rodar um documentário com base no livro tenha surgido muito antes da invasão da Ucrânia pela Rússia, o filme ganha uma relevância maior com o cenário atual. Até porque suas imagens de arquivo impressionam ao mostrar cidades inteiras sendo arrasadas pelas explosões.

Sergei Loznitsa:“Alguém acredita que ganharemos a guerra tirando os russos do tapete vermelho de Cannes?”

“Eu tenho tentado avisar sobre o perigo desta guerra há bastante tempo. E é importante lembrar que essa situação se arrasta desde 2014”, diz o diretor, que rodou “Donbass” em 2018. Ele já retratava como Donbass, uma área industrial no leste da Ucrânia, tinha partes controladas por separatistas russos que desde 2014 ocuparam prédios governamentais e se declararam repúblicas.

“Já era o início de uma guerra e não um conflito localizado, como muitos queriam acreditar”, conta Loznitsa. O diretor define a decisão de Vladimir Putin, de invadir a Ucrânia, como a “mais idiota” que alguém poderia tomar. “Era óbvio que isso não seria uma conquista fácil para os russos”, acrescenta ele.

Seu documentário “Babi Yar. Context”, realizado em 2021, também ecoa com a guerra atual. Loznitsa, que cresceu não muito longe do barranco conhecido como Babi Yar, nos arredores de Kiev, resgata a execução de 34 mil judeus que foram jogados dessa ribanceira pelos nazistas em 1941, com imagens de arquivo.

E a mesma área de Babi Yar foi alvo das forças russas em março último, quando ataques aéreos atingiram justamente o memorial do massacre, deixando pelo menos cinco mortos. “Há 80 anos, era uma guerra entre dois regimes totalitários. Hoje, temos um regime totalitário contra um país democrático”, comenta o documentarista.

Para evitar mais mortes na população civil, Loznitsa acredita que a medida correta a ser tomada pela OTAN seria a criação de uma zona de exclusão aérea na Ucrânia. “Não é uma decisão militar e sim política”, afirma, lamentando que a aliança tenha descartado a possibilidade. Ao fazer cumprir uma suposta zona de interdição de voo, o que poderia significar abater aviões russos, a OTAN teme que a guerra se espalhe pela Europa.

No circuito do cinema, Loznitsa também não está satisfeito com as respostas tímidas do setor diante da ofensiva russa. O diretor que hoje mora na Alemanha, em Berlim, preferiu se desligar da Academia de Cinema Europeu em 28 de fevereiro, como forma de protesto.
“Não dá mais para ler a declaração que eles publicaram no site nos primeiros dias de guerra. Eles simplesmente se mostravam preocupados com a crescente tensão e com o bem-estar dos cineastas ucranianos. Foi inaceitável”, conta o diretor.

O boicote aos russos imposto este ano pela organização do festival francês foi outro erro, segundo Loznitsa. Não houve delegações do país (ou mesmo jornalistas) na última edição – exceto pelo cineasta Kirill Serebrennikov, que é um desafeto de Putin por suas obras sempre contrárias à visão conservadora do Kremlin.

“Por que boicotar cultura em russo? A Ucrânia, por exemplo, é uma sociedade multicultural, com uma porcentagem substancial de população que fala russo. Um boicote atinge parte dos nossos cidadãos”, diz o diretor, acrescentando que essas medidas apenas desviam de uma discussão maior.

“Deveríamos responsabilizar os políticos europeus que durante muitos anos estiveram em paz com o regime russo, fazendo negócios com eles”, alfineta o cineasta, antes de encerrar a entrevista. “Ou será que alguém acredita que ganharemos a guerra ao tirar os russos do tapete vermelho de Cannes?”